Rio já tem 45 cracolândias que reúnem mais de mil dependentes químicos
RIO — O acampamento é completo, com direito a barracos feitos com restos de papelão e lona e até um varal para pendurar roupas. Na Avenida Pasteur, na Urca, as moradias improvisadas indicam a presença de homens e mulheres que consomem crack ao ar livre, na Praça Medalha Milagrosa, sem serem incomodados. Em Copacabana, às 11h desta segunda-feira, quatro usuários fumavam a droga à luz do dia na Rua Djalma Ulrich, também sem constrangimento. Em endereços nobres da cidade, as cenas comprovam que o problema social não está restrito ao canteiro central da Avenida Brasil, próximo ao Parque União, ou a outras regiões mais pobres. Dados da Secretaria municipal Assistência Social e Direitos Humanos do Rio revelam que existem 45 cracolândias espalhadas pela cidade. Nelas, se reúnem 1.221 dependentes químicos. Segundo o mapeamento, que mostra a situação no primeiro semestre deste ano, a maior concentração de pontos de uso de crack fica na Zona Norte, com 17 áreas. O Centro do Rio fica em segundo lugar, com 12 cracolândias. Em seguida, vem a Zona Oeste, com dez. Na Zona Sul, os usuários da droga se concentram em seis pontos.
Uma das cracolândias mais recentes se formou na Urca, onde 25 dependentes químicos moram na praça próxima a um dos prédios da UniRio. A sujeira e, principalmente, a insegurança têm assustado os moradores do bairro.
— Fico inseguro porque não sei quando estão sob efeito das drogas. Na semana passada, passei perto de bicicleta e um dos usuários estava agressivo, gritando e xingando muito. Agora, só passo pelo outro lado da rua. À noite, então, nem passo perto — afirmou a enfermeira Cristiane Lisboa, de 50 anos.
Já em Copacabana são 39 usuários espalhados pela Rua Nossa Senhora de Copacabana. À noite, a Praça Sarah Kubitschek é o ponto escolhido por boa parte do grupo.
— A praça tem um muro alto, o que a torna um bom abrigo e dificulta quem está fora de ver a situação lá dentro. É uma cena triste, degradante. Você vê seres humanos como se fossem zumbis, sob efeito da droga. Além disso, causa insegurança — afirma o presidente da Sociedade Amigos de Copacabana, Horácio Magalhães.
Uma equipe do GLOBO esteve na praça na manhã de ontem, mas não havia usuários de drogas. No entanto, a poucos metros do local, três homens e uma mulher consumiam sem cerimônia crack na Rua Djalma Ulrich. Abaixado, o grupo se escondia atrás de carros estacionados na lateral da via.
Na Zona Norte, a situação não é muito diferente. Madureira concentra o maior número de dependentes químicos do Rio: 65. A secretaria afirma que, no bairro, a maioria dos usuários fica na Rua Leopoldino de Oliveira, hoje território livre. A segunda maior cracolândia na região fica na Rua Luiza Vale, em Del Castilho, com 62 usuários. Vizinhos contam que o consumo de crack ali cresceu quando foi implantada a Unidade Polícia Pacificadora (UPP) em Manguinhos, em 2013. Eles reclamam que aumentou os casos de furtos em quintais e arrombamento de carros na região.
RIO TEM 4.200 DEPENDENTES QUÍMICOS
No Centro do Rio, os principais grupos ficam na Avenida Marechal Câmara (em toda a sua extensão), com 50 dependentes, e no Campo de Santana, com 48. A Rua Eugênio Paiva, em Senador Camará, e a Rua Coronel Tamarindo, em Bangu, são as duas maiores concentrações de usuários na Zona Oeste com, respectivamente, 34 e 33 dependentes químicos de crack, segundo a secretaria. Já na Zona Sul, a Rua Nossa Senhora de Copacabana (também em toda a extensão) possui 39 dependentes de crack, seguida do bairro da Glória, com 30.
Além desses usuários, o município tem hoje 4.200 dependentes químicos com transtornos severos ou persistentes por uso de álcool e outras drogas, de acordo com a Secretaria municipal de Saúde. São 30 CAPs (Centros de Assistência Psicossocial) no Rio, seis deles especializados em pacientes dependentes de álcool e drogas. Mesmo com essa rede, especialistas criticam a política de assistência social, especialmente pelo uso da força policial. Na última quarta-feira, a Polícia Civil, com apoio da PM e da Guarda Municipal, fez uma operação na Avenida Brasil, onde fica uma das maiores cracolândias, porque o número de roubos a motoristas na via expressa disparou. Na ação, que teve pedradas e muita correria pelas pistas, 23 pessoas foram levadas à delegacia. Nenhum funcionário da Secretaria municipal de Assistência Social, responsável pelas ações de acolhimento de usuários, acompanhou a operação. Para o psiquiatra Jorge Jaber, o episódio demonstra uma “completa ignorância” sobre a abordagem dessas pessoas:
— Há uma completa ignorância sobre como é que se estabelece um sistema de saúde voltado para uma doença específica. O primeiro erro é a abordagem desses pacientes, que deve ser médica. Minha experiência de campo é que eles são muito acessíveis a uma abordagem respeitosa.A Secretaria de Assistência Social informou que esteve três dias da semana passada na cracolândia da Avenida Brasil, quando atendeu 55 homens, seis mulheres e um adolescente. Nenhum deles, entretanto, aceitou acolhimento no abrigo. O convencimento, segundo a secretaria, é justamente a maior dificuldade do trabalho. “Quando uma pessoa aceita ser acolhida no abrigo e é verificada a dependência com álcool ou qualquer outro tipo de entorpecentes, o indivíduo é encaminhado à rede de saúde para tratamento continuado”.
Polêmica, a internação compulsória é condenada por profissionais que acompanham o tema pelo aspecto da saúde pública e do direito. O presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no Rio, Marcelo Chalréo, explica que a Lei Antimanicomial (Lei Federal 10.216/2001) restringe a ação a casos em situação limite. Para ele, não é possível usar o mecanismo como saída para reduzir as cracolândias espalhadas pela cidade.
— São pessoas pobres, que geralmente vêm de conflitos sociais graves. Você tem um conflito familiar e econômico que embasa essa situação. Isso (a dependência química) é consequência de um problema que não será resolvido por uma internação compulsória — diz Chalréo.
INTERVENÇÃO POLICIAL PODE SER INEFICIENTE
A psiquiatra Analice Gigliotti, que coordenada o programa de álcool e outras drogas da Santa Casa, concorda que boa parte dos dependentes tem histórico de grande complexidade familiar. Segundo Gigliotti, é preciso reinseri-los na sociedade:
— Uma intervenção policial que não esteja amplamente coordenada junto com as secretarias de Saúde e de Assistência Social é uma intervenção sem eficácia. Não adianta tirar o dependente de crack e interná-lo compulsoriamente. Voltarão para as ruas depois. Muitos não têm família. As pessoas precisam ser reinseridas socialmente. Não há solução pontual e milagrosa. Soluções para dependência química demandam trabalho e tempo.
A legislação em vigor é clara. Estabelece que a internação só será indicada “quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes”. Ainda assim, estabelece que o tratamento visará a “reinserção social do paciente”, sendo vedada a internação de pacientes portadores de transtornos mentais em instituições com características asilares. A internação psiquiátrica só é possível com laudo médico.
Desde a exoneração da deputada Teresa Bergher, a Assistência Social tem à frente Leda de Azevedo como secretária interina. Os servidores já sentem os sintomas da acefalia da pasta. Na segunda-feira passada, uma circular informava que, como não havia sido concluído um pregão, não tinha água potável na repartição. Procurada, a secretaria disse que a aquisição dos galões para consumo interno está regularizada e que, “em momento algum, funcionários ficaram sem o fornecimento de água”.
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