Como Andy Warhol expõe as fraturas do sonho americano em mostra em São Paulo
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SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Mais do que um artista, Andy Warhol almejava ser uma máquina. Ele queria ultrapassar a solenidade gestual do expressionismo abstrato, em que cada pincelada era considerada um vestígio da subjetividade de seu autor. No lugar disso, perseguia a gestualidade fria e mecânica das engrenagens industriais.
Como se saíssem de uma linha de montagem, suas obras eram produzidas em série nas "Fábricas", os célebres ateliês onde o artista entrelaçava arte, boemia e intelectualidade em Nova York. Eram espaços de alta voltagem sexual, artística e lisérgica que ajudaram a energizar a poética de um dos nomes mais luminosos da arte mundial.
Não por acaso, a atmosfera fabril desses espaços é um dos fios condutores da megaexposição "Andy Warhol: Pop Art!", que abre na próxima quinta-feira (1º) no Museu de Arte Brasileira da Fundação Armando Álvares Penteado, na capital paulista.
A mostra, a maior do artista já realizada fora dos Estados Unidos, reúne mais de 600 itens cedidos pelo Museu Andy Warhol, localizado na cidade americana de Pittsburgh. São produções concebidas em diferentes suportes como vídeos, pinturas, esculturas e fotografias, uma evidência da inquietude criativa e da versatilidade técnica do maior expoente da pop art.
"Seja qual for a mídia ou a plataforma, queríamos que as pessoas tivessem noção de como ele foi grande e completo", afirma Roberto Souza Leão, cofundador do Totex, instituição que organizou a iniciativa. "Desde o começo, nossa ideia foi fazer uma cidade do pop. Um lugar dentro do qual houvesse núcleos temáticos que mostrassem a potência dele."
De fato, andar pela exposição é como visitar uma metrópole povoada por diferentes versões do mesmo homem. Vemos um Warhol pouco conhecido, como aquele que ilustrava sapatos e peças publicitárias no começo da carreira, mas há também um artista já consolidado, autor de trabalhos clássicos, a exemplo dos retratos de Marilyn Monroe, Mao Tsé-Tung e Elizabeth Taylor.
Por outro lado, vemos de forma um tanto pálida o homoerotismo que atravessou a prática artística do americano. É um cenário diferente da alta carga homoafetiva de "Painting four Hands", exposição que reuniu há dois anos obras de Warhol e Jean-Michel Basquiat na Fundação Louis Vuitton, em Paris.
A exposição da Faap traz timidamente, nos fundos de um dos dois núcleos expositivos, imagens da série "Ladies and Gentlemen", em que Warhol fotografou figuras proeminentes da comunidade trans nova-iorquina, como Marsha P. Johnson e Wilhelmina Ross.
O dado mais significativo da obra, porém, está na parte inferior, onde se lê "The Big C", uma alusão ao modo como a imprensa americana dos anos 1980 se referia à epidemia de Aids, chamada de "o câncer gay".
O próprio artista perdeu pessoas próximas em razão da doença e testemunhou como a comunidade foi estigmatizada nesse período. Talvez por isso mesmo ele tenha lançado um novo olhar sobre "A Última Ceia" sua pintura anuncia não apenas a morte de um homem, mas de uma população inteira.
Warhol cresceu em um lar fortemente católico e se manteve próximo da religião mesmo depois de adulto, com o hábito de rezar e frequentar missas. "Não à toa, a gente vê alguns elementos religiosos incorporados na maneira como ele retratou celebridades", diz Priscyla Gomes, que assina a curadora da mostra.
Evidência disso é uma serigrafia de Marilyn Monroe em que a atriz aparece com os cabelos tingidos de amarelo-ouro, como se uma auréola envolvesse a sua cabeça. É uma imagem que faz lembrar representações bizantinas de Nossa Senhora Aparecida, nas quais um halo dourado demarca a elevação espiritual da mãe de Cristo.
Warhol, aliás, parece ter entendido já nos anos 1960 que a adoração às celebridades podia ser tão fervorosa quanto àquela reservada a divindades religiosas. Assim, religião e indústria cultural se confundem no culto às imagens, algo central em sua obra.
Tomando de empréstimo a lógica fordista, Warhol queria produzir em larga escala e de forma serializada, motivo pelo qual decidiu se valer da serigrafia, que permitia a impressão em massa de figuras. Com isso, dinamitou a ideia de obras únicas e irreproduzíveis, um dos pilares que sustentava o mundo das artes.
"Ele não queria mais ser um artista pautado pelo gesto e pela unicidade da impressão. Queria uma produção que tivesse dimensão industrial", diz Gomes, a curadora. "Ele pôs em xeque a aura de sacralidade em torno do que era considerado arte."
Como aconteceu com Marcel Duchamp e seu urinol no começo do século 20, Warhol causou furor ao transformar latas de sopa em objetos de exposição. "Foi uma atitude disruptiva, porque ele se apropriou do banal e do prosaico, que não eram institucionalizados dentro da arte", acrescenta a curadora.
O americano refletiu ainda sobre a banalização da tragédia nos meios de comunicação. É isso o que se vê na série "Morte e Desastre", possivelmente uma das produções mais intrigantes da mostra. O projeto é formado por imagens soturnas e por vezes tétricas de suicídios, cadeiras elétricas e acidentes aéreos. Há até imagens de latas de atum, responsáveis por uma série de mortes nos Estados Unidos, por transmitirem botulismo.
"Existe uma dimensão melancólica no trabalho do Warhol. Ele é tratado como uma figura esfuziante, mas é como se olhasse para a gente e dissesse acabou", afirma Tiago Mesquita, professor da Escola de Comunicações e Artes das Universidade de São Paulo e especialista na obra do americano. "Há uma constatação da vitória irrevogável da cultura de massa."
O artista talvez tenha sido quem conseguiu traduzir de maneira mais concisa as cicatrizes que se escondem sob a fachada sedutora da sociedade de consumo. Não por acaso, mesmo em seus trabalhos mais reluzentes e glamourosos, a morte está sempre à espreita. Os retratos de Marilyn Monroe, por exemplo, foram feitos pouco após a morte da atriz, enquanto Jackie Kennedy foi retratada depois do assassinato de seu marido, o então presidente John F. Kennedy.
"Warhol narra tragédias americanas. Todos os traumas daquela sociedade aparecem no trabalho dele", diz Mesquita. "É um artista que está lidando com o fordismo em seu apogeu e em seu declínio."
Nessa perspectiva, retratar figuras trágicas sob o verniz da beleza e da juventude é uma forma de preservar o que restou do sonho americano ideário, aliás, do qual o próprio Warhol foi um produto. Filho de imigrantes eslovacos, ele nasceu em um lar pobre de Pittsburgh. Após concluir o curso de design comercial, pegou o diploma, guardou seus pertences em sacolas e se mudou para Nova York.
Na metrópole, subiu de forma progressiva os degraus do mundo das artes até chegar ao topo, acumulando pelo caminho fortuna, prestígio e desafetos. Quando morreu, em 1987, era um dos artistas mais famosos do século 20, nome tão estrelado quanto os das celebridades que costumava retratar.
"É impressionante como uma experiência marcadamente americana ressoou em todos nós", diz Mesquita. "Hoje, com o celular e a internet, isso se radicalizou muito mais do que ele jamais sonhou. A mediação das imagens nas relações humanas é cada vez mais inescapável."
ANDY WARHOL: POP ART!
- Quando Ter. a dom., das 9h às 20h. De 1º de maio a 30 de junho
- Onde MAB FAAP - r. Alagoas, 903, São Paulo
- Preço De ter. a sex., R$ 50 inteira; sáb. e dom., R$ 70
- Classificação Livre

ASSUNTOS: Arte e Cultura