Filme 'Sobreviventes' torna brancos em escravos e não quer ser Paulo Coelho
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SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Dois homens estão numa ilha deserta no meio do Atlântico, no século 19.

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O negro João Salvador joga xadrez com o branco Fradique Mendes enquanto conversam sobre a escravatura e o tráfico negreiro, já proibido naquela altura, até que um tenta voltar a falar do jogo.
"Te transformaste num adversário terrível", diz o fidalgo interpretado pelo ator português Miguel Damião.
"Mas no fim são sempre as pretas que perdem, ainda não percebeu? Dá próxima, jogue com as brancas", responde o mordomo escravizado, encarnado pelo brasileiro Allex Miranda.
O diálogo se dá em "Sobreviventes", que estreia na próxima quinta (24). É o último filme dirigido pelo cineasta português José Barahona, morto no ano passado.
O longa, em preto e branco, acompanha os sobreviventes do naufrágio de um navio negreiro, que ia de Angola ao Brasil. À medida que a institucionalidade do mundo "civilizado" fica para trás, as hipocrisias vêm à tona e muitos dos papéis sociais são invertidos.
Os primeiros sobreviventes com quem o espectador tem contato são todos brancos. Daí surge um negro, João.
Ao avistá-lo, os de pele alva o amarram e atiram-lhe pedras e ofensas. João é salvo, porém, pela jovem branca até então calada. Daí ficamos sabendo da história de amor impossível entre um mordomo negro com a menina branca rica, que revela já carregar uma barriga de vários meses de gestação, fruto desse relacionamento.
Mais à frente, o grupo encontra os agora ex-escravos que sobreviveram do naufrágio. Mais numerosos, eles demonstram mais sucesso na tarefa de sobreviver naquele local inóspito. Os brancos, então, viram escravos.
Os negros não querem ser salvos, cientes de o que os espera no Brasil é muito pior. Aquela é uma oportunidade de fugir da desgraça da escravatura. Para os brancos, é um sonho ruim do qual anseiam logo acordar.
"É como se eu adormecesse e estivesse dentro de um pesadelo. Eu tornei-me escrava dos meus escravos", diz dona Emília, a personificação do conservadorismo e de toda a hipocrisia que o status quo carrega.
O escritor angolano José Eduardo Agualusa conta que só aceitou participar da feitura do roteiro após uma conversa com Barahona. "Eu queria mesmo era dar a perspectiva africana. Então foi isso que eu tentei o tempo todo, mostrar que aquelas pessoas tinham uma vida, uma cultura", diz o escritor. "Tentávamos fugir também a essa figura, a essa coisa do branco salvador. Que o Fradique poderia ser, não é?"
Em 2017, um filme também em preto e branco, que também mostrava o envolvimento de uma jovem branca com um jovem negro e também falava dos horrores da escravidão no século 19 gerou polêmica. "Vazante", de Daniela Thomas, gerou uma celeuma ao ser exibido no Festival de Brasília, em setembro daquele ano. O filme foi criticado por não dar voz aos personagens negros e retratá-los de forma superficial.
"Sobreviventes" parece evitar seguir esse percurso sinuoso que "Vazante" percorreu. "Não é mais um filme sobre pessoas escravizadas, africanos escravizados, porque, justamente, tenta dar um olhar a esses africanos", diz Agualusa.
Em "Sobreviventes", fica evidente o conceito de lugar de fala. Cada personagem demonstra ser fruto de suas experiências individual e coletiva, do lugar social que ocupam, sobretudo no que se refere a gênero e cor da pele.
A certa altura, Vissolela, uma das líderes entre os ex-escravizados, anuncia que as mulheres da ilha não vão mais trabalhar no campo "para alimentar as bocas preguiçosas dos homens".
"É vergonhoso os homens trabalharem a terra", protesta um homem, evocando a tradição e, talvez, uma masculinidade frágil. Ele segue, mencionando que a ex-escravizada também já teve status de nobreza. "Lá [na África] podia ser princesa, mas aqui é mulher como as outras", ele diz.
Neste e em outros diálogos, como num jogo de xadrez retórico, um tenta desestabilizar os privilégios, dores e preconceitos do outro. Ser homem, mulher, preto, branco, livre, escravo. Trabalhar na casa grande, trabalhar no campo, não trabalhar. Falar com sotaque europeu, africano, brasileiro ou numa mistura de todos eles. Todos esses elementos são usados nos diálogos como ataques ou escudos pelos personagens.
Agualusa rechaça qualquer imputação de "identitário" que venha por ventura a ser lançada sobre o filme.
Segundo o escritor, a palavra "identitário" em Angola carrega um sentido muito diferente do que se usa hoje no contexto de guerras culturais. "[Em Angola,] tem muito mais a ver com o sentido de reivindicação das culturas autóctones", diz.
"Vou lhe dizer, o filme é visto de uma maneira em Moçambique, em Angola, de outra maneira em Portugal e de outra maneira no Brasil. Mas não creio e espero que em nenhum desses lugares seja visto dessa forma [identitária]. Porque essa é uma forma limitada, limitante", diz Agualusa.
"A mim interessa-me que o filme interrogue. Um bom filme, um bom romance, não dá respostas. Se souber colocar questões, já fez o seu papel. Quer dizer, quem dá respostas é o Paulo Coelho. Nós não."
SOBREVIVENTES
- Quando Estreia na quinta (24) nos cinemas
- Classificação 16 anos
- Elenco Miguel Damião, Allex Miranda, Anabela Moreira, Roberto Bomtempo, Zia Soares, Paulo Azevedo, Kim Ostrowskij, Hugo Narciso
- Produção Brasil e Portugal, 2024
- Direção José Barahona

ASSUNTOS: Arte e Cultura