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Governo da Itália me trata como cão tinhoso, diz autor referência em Mussolini

Por Folha de São Paulo

16/10/2024 10h00 — em
Arte e Cultura



FRANKFURT, ALEMANHA (FOLHAPRESS) - O escritor italiano Antonio Scurati não deu a mínima para a homenagem que seu país recebe como convidado de honra desta edição da Feira de Frankfurt. Ao discursar no evento na manhã desta quarta-feira, acusou sem medir palavras que o governo de seu país hoje o trata como um "cão tinhoso", um inimigo público.

Ele é autor da série "M - O Homem da Providência" e "M - O Filho do Século", romances que ficcionalizam a ascensão do maior nome do fascismo, Benito Mussolini. Os dois livros foram publicados no Brasil pela Intrínseca e o último foi vencedor do maior prêmio da literatura italiana, o Strega.

E a Itália hoje está sob a batuta da primeira-ministra Giorgia Meloni, que ele define como de extrema direita. "Eu pesquisei e escrevi 3.000 páginas sobre Mussolini e, hoje, estou sendo censurado e ofendido abertamente pelas mais altas hierarquias do governo. Os jornais de direita me pintam como uma pessoa ruim, e as consequencias disso são duras."

Para ilustrar o clima persecutório, ele lembrou quando um jornal estampou uma grande foto sua na primeira página com a legenda "o homem de M", um trocadilho entre o título de seus livros e um palavrão escatológico que tem tradução muito próxima na língua portuguesa.

"Eu lancei uma narrativa sobre Mussolini pela perspectiva antifascista. E, para [o atual governo], reabilitar o fascismo de forma parcial é parte essencial de um ataque à democracia liberal no qual a Itália é vanguarda hoje. E eu sou tratado como um inimigo, um cão tinhoso, pelos representantes do governo."

Scurati não se preocupou em poupar palavras mesmo com a homenagem à Itália neste que é o maior evento literário do mundo. Apesar de ter mantido o cenho franzido o tempo todo, arrancou risadas da plateia ao rotular a situação como "uma celebração funerária".

"Não me sinto mal, porque não estou aqui representando o governo. Eu represento a cultura italiana, O ministro da Cultura [Alessandro Giuli], que abriu a participação da comitiva aqui, é um homem que nunca negou sua militância em um partido de teor fascista nos anos 1990."

Fizeram coro a ele, na mesma mesa, a escritora Francesca Melandri, que ressaltou ter sempre sentido inveja de países europeus que tratam a literatura melhor que a Itália, e Paolo Giordano, também vencedor do Strega por "A Solidão dos Números Primos", romance publicado pela Rocco. O encontro foi promovido pela PEN Berlin, organização alemã em defesa da liberdade de expressão.

"O padrão contra a esquerda tem sido esse", ressaltou Giordano. "Tem algo errado na relação entre os escritores e o governo hoje. Você usa seu direito de liberdade de expressão e a resposta que tem é agressiva, em tom de bullying, com ameaça de processos disciplinares. Não é hipersensibilidade nossa. A imprensa de direita nos ataca até em nossa vida privada."

Esse tipo de ofensiva, lembrou Melandri, não se restringe apenas ao seu país, tendo se tornado motivo de preocupação em "todas as democracias ocidentais". "Não é coincidência que Meloni seja amiga de Orban, da Hungria, que é amigo de Putin, na Rússia, que é amigo de Trump, nos Estados Unidos."

E a cultura não é algo secundário nesses projetos políticos, como Scurati procurou frisar. "Substituir a história verdadeira por outra facciosa, polêmica, parcial, é parte integrante do programa político da nova direita. Não é um ataque frontal. É pelos perímetros."


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