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'A Mais Preciosa das Cargas' trata as dores da guerra a partir da poesia

Por Folha de São Paulo

24/04/2025 13h15 — em
Arte e Cultura


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FOLHAPRESS - Qualquer pessoa, por menor contato que tenha com cinema, sabe que crianças e bichos de estimação costumam atrair olhares de carinho e simpatia.

Portanto, é um recurso fácil apelar para uma trama que contemple uma criança e um cachorro, como é o caso, ao menos em sua primeira metade, de "A Mais Preciosa das Cargas", filme franco-belga do oscarizado Michel Hazanavicius, baseado em um conto de Jean-Claude Grumberg.

Como é uma animação, o apelo comercial ao mesmo tempo aumenta e diminui. A Pixar, o estúdio Ghibli e outros polos de animação fortaleceram o nicho nas últimas décadas, tornando o formato mais atraente para distribuidores e produtores.

Mas por mais bela que seja a animação, não conseguirá se igualar ao rosto e ao carisma de uma bela criança ou um belo cachorro. Ou seja, a animação enfraquece um pouco o apelo, embora jamais de modo a não o justificar.

O filme, contudo, abandona em certo ponto essa facilidade para mostrar o horror da guerra com alguma poesia. Estamos diante de uma animação mais nuançada e adulta.

Um lenhador e sua esposa vivem numa região florestal e fria, em meio à pobreza e ao medo de serem atingidos de alguma forma pela Segunda Guerra Mundial. Num dia de muita nevasca, representada com um marcante trabalho de som, a esposa segue o choro de uma criança. Depois de muito procurar, encontra um bebê abandonado perto dos trilhos do trem.

Ela decide adotar a pequena menina, enfrentando a resistência inicial do marido. Depois de um tempo, ele também se rende aos encantos da criança, que por sua vez se encanta com a enorme barba ruiva do lenhador. O casal acompanha enternecido o crescimento da filha que ganharam: suas brincadeiras divertidas com o cachorro, a primeira vez que ela fica de pé, seu sorriso cativante.

Até que a maldade humana aparece e uma nova reviravolta acontece na vida da criança e do casal. A esta altura, já havíamos percebido que o filme é ambientado perto de um campo de concentração. A câmera acompanha um pássaro até lá. Curiosa maneira de nos situar geograficamente.

É então que as peças começam a se encaixar, o desespero explica o abandono e uma bela comunhão entre humanos e animais provoca um fio de esperança.

Ficam as perguntas, sempre feitas quando surgem filmes do tipo. Vale entrar novamente no tema do holocausto, nas atrocidades cometidas por nazistas? Há algo novo a dizer sobre o assunto? E outra pergunta, em contraposição à anterior. Precisa ter algo novo para voltarmos a esse evento traumático?

A resposta é fácil nestes dias em que se normalizou a extrema direita, o genocídio e a intolerância. Infelizmente, a humanidade não aprende. Logo, um tema como esse jamais se esgota. Tudo depende do tratamento que se dê a ele.

O diretor tem normalmente uma mão um tanto pesada, mas aqui se beneficia do atenuamento inerente à opção pela animação. As atrocidades surgem como pinturas expressionistas. O demasiado visto é mostrado com alguma variante que o torna mais palatável, geralmente de forma alegórica.

A escolha ainda traz outra diferença. O conto de Grumberg poderia ter sido facilmente adaptado com atores e atrizes. Mas provavelmente não teria esse tempo, que nos permite experienciar uma emoção extrema, sem nos sentirmos chantageados —a bela trilha de Alexandre Desplat contribui. É um pequeno e belo conto moral o que vemos em 80 minutos de projeção.

Hazanavicius tem um caminho curioso no cinema, embora com muita bondade e alguma ingenuidade se possa dizer que é bem-sucedido, de um ponto de vista crítico. O vencedor do Oscar de melhor filme, "O Artista", tem uma ideia nostálgica realizada de maneira pueril. O longa que homenageia Godard, "O Formidável", não é muito melhor.

Existem bons animadores em atividade, alguns franceses entre eles. Com "A Mais Preciosa das Cargas", Hazanavicius automaticamente reivindica seu espaço, e talvez mereça, pois realiza, de longe, o seu melhor filme.

Talvez a animação seja um caminho mais seguro para cineastas como ele, um tanto incertos no trato de temas fortes, com pouco critério na hora de escolher o que mostrar e o que não mostrar, e com alguma falta de noção, que permanece na hora de terminar um filme tão melancólico com uma música alegre.

A MAIS PRECIOSA DAS CARGAS

- Avaliação Muito bom

- Classificação 14 anos

- Elenco Jean-Louis Trintignant, Dominique Blanc, Denis Podalydès

- Produção França, Bélgica, 2024

- Direção Michel Hazanavicius

- Onde ver Em cartaz nos cinemas


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