Após massacres, nada mudou nas penitenciárias do país
BRASÍLIA — Cadeias superlotadas e comandadas por facções criminosas com acesso a armas e celulares, frágil segurança por falta de agentes penitenciários e facilidades de comunicação entre presos e o mundo externo. Esse cenário, que permitiu uma onda de rebeliões em janeiro deste ano com a morte de 130 detentos, permanece no Brasil mesmo após ações do Executivo e do Judiciário.
Esses fatores ficam evidentes quando três ações adotadas logo após os massacres nos presídios do Norte e Nordeste em janeiro são analisadas: o mutirão para julgar processos de presos sem condenação; uma varredura nas cadeias para apreender armas, celulares e outros objetos que não poderiam estar nas celas; e a criação de uma força-tarefa nacional de agentes penitenciários para auxiliar os estados que enfrentassem crises.
Logo após os massacres prisionais no Amazonas, em Roraima e no Rio Grande do Norte, a presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Cármen Lúcia, convocou os presidentes de tribunais de Justiça e lançou o “Choque de Justiça”. A ação visava a priorizar o julgamento de presos provisórios (aqueles detidos sem julgamento), que compunham, à época, 40,6% da população carcerária.
A convocação da ministra, no entanto, não surtiu grande efeito até mesmo nos estados onde ocorreram os massacres. Em Roraima, onde foram mortos 33 presos na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, os juízes analisaram apenas 123 processos de um estoque de 1.923. No Rio Grande do Norte, onde a Penitenciária Estadual de Alcaçuz ficou sob controle dos presos por dias e foram registradas 26 mortes, apenas 462 processos de presos provisórios, de um total de 2.820, foram julgados.
No Amazonas, onde houve o primeiro massacre, com 56 mortos no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, havia um estoque de 2.353 processos de presos provisórios sem decisão, e 1.493 deles foram julgados no mutirão.
Nesses estados houve reduções marginais do número de presos provisórios. No Amazonas, queda de 1,2%; em Roraima, 1,67%; e no Rio Grande do Norte, redução mais tímida, de 0,34%.
Em todo o país foram analisados 56,4 mil processos de presos provisórios de um total de 244, 6 mil, entre fevereiro e abril (período do esforço concentrado). Apenas 4.621 pessoas foram libertadas, reduzindo o percentual de presos provisórios no país para 39,1% em relação ao total de detentos.
Os tribunais também analisaram a necessidade de manutenção de 92,7 mil prisões preventivas nesses meses e decidiram relaxar a prisão de 21.774 pessoas.
O governo federal anunciou à época um Plano Nacional de Segurança Pública que ficou marcado pelo improviso, já que não detalhava o cronograma de ações e os orçamentos de cada uma das iniciativas. Além disso, deu início a duas ações mais emergenciais. Uma delas era a “Operação Varredura”, que visava a recolher objetos que não poderiam ter ingressado nas cadeias do país.
A ação coordenada pelo Ministério da Defesa usou militares para vistoriar os presídios a pedido dos governadores. Foram feitas 26 vistorias até o mês passado em sete estados (Amazonas, Roraima, Pará, Acre, Rondônia, Mato Grosso do Sul e Rio Grande do Norte).
Chama atenção que somente sete governadores pediram auxílio das Forças Armadas para vistoriar presídios e apenas de estados do Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Os militares não foram convidados para vistoriar os maiores sistemas prisionais, em São Paulo e no Rio de Janeiro, onde também estão concentradas as principais facções criminosas do país, que são apontadas como as responsáveis pelos massacres do começo do ano.
Para o ministro da Defesa, Raul Jungmann, seguramente as cadeias no restante do país também estão cheias de armas e celulares:
— Eu diria que hoje a gente pode intuir um acordo branco, não escrito, entre sistema penitenciário de alguns estados e os apenados, aqueles que estão presos. Porque nem fechando os olhos você pode ignorar o que está entrando nessas penitenciárias, e a amostragem deixa claro que não é privilegio nem do Norte, nem do Centro-Oeste (ter armas e celulares nos presídios). As principais facções são nacionais. E aí (no Rio e em São Paulo) não tem nenhum pedido (para vistorias). Nunca houve — analisa o ministro da Defesa.
O que apareceu nas cadeias foi revelador. Com um população de mais de 20 mil presos nas unidades vistoriadas, os militares recolheram mais de 7,2 mil armas brancas, 43 navalhas, 99 tesouras, 452 celulares, 304 chips de celular, sete balanças de precisão para pesar drogas, 167 televisores, dois revólveres e 84 munições, 445 cordas tipo teresa (usadas para fugas) e até 61 geladeiras. Também foram encontradas drogas, dinheiro, pendrives, botijões de gás, fogões, antenas, rádios transmissores e isqueiros.
— O que chama mais atenção é a questão das armas brancas. São 7 mil e tantas armas desse tipo para 20 mil apenados, o que dá uma média de mais de uma arma para cada três prisioneiros. Há bandos armados dentro do sistema prisional, que é responsabilidade do Estado. E isso significa que, quando ocorrem os conflitos, a letalidade é muito grande. E isso é responsabilidade do sistema prisional — afirma Jugmann.
Segundo o ministro, em todas as unidades vistoriadas também foi possível notar a facilidade com que os detentos têm para se comunicar com pessoas fora, seja por meio das visitas de advogados e familiares ou por intermédio dos detentos em regimes especiais, como o semiaberto.
— Nós continuamos repetindo o equívoco de não instituir a chamada cela dura, com os parlatórios e com impossibilidade de comunicação direta do preso com o visitante, seja ele advogado ou familiar. Obviamente que isso só conduz a essa capacidade que existe de chefes de bandos presos há dez, 15 anos no controle desses grupos (criminosos). Eles estão seguros (dentro da cadeia) e mantendo o controle. E há uma leniência do sistema prisional dos estados em manter isso — critica o ministro.
Outra ação articulada pelo governo federal foi colocar agentes penitenciários à disposição dos estados que tivessem problemas no sistema prisional, como rebeliões ou riscos de fuga. Para isso, foi criada, em janeiro, a Força-Tarefa de Intervenção Penitenciária, formada por agentes cedidos pelos estados e agentes federais de execuções penal do Departamento Penitenciário Nacional (Depen).
Desde a criação, porém, a força-tarefa só foi deslocada para o Rio Grande do Norte, onde permanece até hoje e trabalha apenas no presídio de Alcaçuz. Originalmente, esse grupo deveria atender às necessidades do estado por um período de 30 dias. No caso potiguar, o pedido de ajuda foi renovado mensalmente desde fevereiro e, agora, há permissão para que o contingente fique lá ao menos até o fim de outubro.
Governadores do Norte, entre eles o de Roraima, já pediram ajuda da força-tarefa, mas não foram atendidos porque os homens estão atuando no Rio Grande do Norte.
Para Jugmann, esse cenário demonstra que os fatores relacionados aos massacres de janeiro permanecem presentes:
— As condições estruturais do sistema prisional brasileiro, que levaram recentemente àqueles conflitos e tragédias, continuam postas, estruturalmente postas.
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