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Saiba como empresa que forneceu sistema espião à Abin ganhou o poder público no Brasil

Por Portal Do Holanda

23/10/2023 18h57 — em
Brasil


Foto: Reprodução / Abin
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O uso das ferramentas de monitoramento virtual da empresa israelense Cognyte não se limita à Abin (Agência Brasileira de Inteligência), que foi alvo da Operação Última Milha, conduzida pela Polícia Federal na sexta-feira (20) com a autorização do STF (Supremo Tribunal Federal). A operação resultou na execução de 25 mandados de busca e apreensão em cinco estados do Brasil, na prisão de dois funcionários da Abin e na suspensão de outros três funcionários, incluindo Paulo Maurício Fortunato, que ocupava a posição de terceiro mais alto na agência. A investigação da PF está focada em determinar se o programa FirstMile foi utilizado para monitorar críticos e opositores do governo Bolsonaro.

De acordo com a Agência Pública, além da Abin, diversos governos estaduais, especialmente aqueles alinhados com a política de direita, como Goiás, São Paulo, Amazonas e Mato Grosso, a PRF (Polícia Rodoviária Federal), sob a gestão de Silvinei Vasques, que era ligado ao governo de Bolsonaro, e algumas partes das Forças Armadas, também compraram ou renovaram contratos para obter produtos da empresa nos últimos cinco anos. O primeiro registro de contratação do programa pelo governo federal data de 1º de dezembro de 2017, ainda durante o mandato do então presidente Michel Temer. Essa aquisição foi realizada pela Abin por um valor de R$ 9 milhões.

Em 2017, a fabricante do FirstMile fazia parte do grupo israelense Verint Systems Inc., com Caio Cruz como seu representante comercial no Brasil. Notavelmente, Caio Cruz é filho do então secretário nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça, o general da reserva do Exército Carlos Alberto dos Santos Cruz, que posteriormente integrou o governo Bolsonaro e depois se distanciou dele. Caio Cruz atuou como responsável pelas vendas da filial brasileira da Verint até fevereiro de 2021, quando a empresa separou seu setor de inteligência para criar uma nova empresa chamada Cognyte Software Ltd. De acordo com seu perfil no LinkedIn, Caio Cruz continuou a trabalhar com o grupo Cognyte no Brasil, atuando na área de vendas em Brasília.

A primeira compra do governo federal de ferramentas do grupo israelense foi realizada em 2017, através da revendedora oficial da Cognyte no Brasil, na época conhecida como Suntech S/A, e sediada em Florianópolis. Atualmente, a Suntech mudou de nome para Cognyte Brasil S/A e é considerada uma das principais filiais da companhia israelense no mundo, conforme declarações do grupo à Comissão de Valores Mobiliários dos Estados Unidos (SEC), uma entidade reguladora do mercado financeiro.

O primeiro contrato com o governo foi assinado sem licitação, a pedido do então secretário de Planejamento e Gestão da Abin, Antônio Augusto Muniz de Carvalho, que era responsável pelas compras do órgão, e do ex-diretor-adjunto da Abin, Franck Márcio de Oliveira. Naquela época, a empresa havia vendido menos de R$ 2 milhões em produtos para o governo brasileiro. Desde então, a Cognyte acumulou mais de R$ 57 milhões em novos contratos, de acordo com uma investigação exclusiva da Agência Pública.

Secretarias de segurança de nove estados fecharam acordos com o grupo israelense no período coberto pela reportagem. Além de Mato Grosso, São Paulo, Amazonas e Goiás, foram identificados que outros cinco estados assinaram contratos com a Cognyte desde 2017, de acordo com publicações nos diários oficiais: Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Pará, Espírito Santo e Alagoas.

Em agosto, a Agência Pública divulgou com exclusividade na coluna "Entrelinhas do Poder" a existência de outro contrato, uma compra sigilosa de mais de R$ 4 milhões feita pela Comissão do Exército Brasileiro em Washington (EUA) para a "renovação de licenças de interesse" dos militares nos Estados Unidos. A compra foi anunciada em 20 de janeiro passado, no último dia de comando do general Júlio César de Arruda, que foi destituído do cargo pelo governo Lula no dia seguinte, em meio a uma crise com o Alto Comando do Exército após os eventos de 8 de janeiro. Há informações sobre outra compra militar, realizada pelo Comando da Força Aérea Brasileira na Europa. Um aditivo a um contrato firmado em 2022 foi assinado em 2023, já no governo Lula, relacionado a um "sistema de sensoriamento de frequências UHF aerotransportado" para a "integração e expansão da plataforma de OSINT (Open Source Intelligence), atualmente em uso pelo Comando da Aeronáutica".

O diretor da Abin durante o governo Bolsonaro, Alexandre Ramagem (PL-RJ), foi procurado para comentar a Operação Última Milha, mas ainda não respondeu. Atualmente, ele é deputado federal pelo Rio de Janeiro. Tentativas de contato com a Cognyte no Brasil também foram realizadas, mas nenhum dos representantes ou assessores de comunicação da empresa foi localizado.

Há suspeitas de exploração ilegal das redes de telefonia de acordo com o Código de Processo Penal brasileiro, que estabelece que o "acesso ao conteúdo da comunicação de qualquer natureza", incluindo programas como o FirstMile, deve depender de autorização judicial. Sem essa autorização, a vigilância de indivíduos por meio de ferramentas de espionagem é considerada ilegal, segundo especialistas. No cenário internacional, existem evidências de abusos relacionados a governos que recorreram a ferramentas de espionagem da empresa Cognyte. Uma reportagem do jornal israelense Haaretz revelou que a Cognyte vendeu softwares de rastreamento em tempo real via GPS para o governo de Mianmar um mês antes de um violento golpe de Estado no país. De acordo com a Anistia Internacional, o governo do Sudão do Sul também utilizou produtos do grupo israelense para perseguir e violar os direitos de opositores políticos.

De acordo com uma análise da Associação Brasileira das Indústrias de Materiais de Defesa e Segurança (Abimde), o software First Mile permite o rastreamento em tempo real de dispositivos móveis, como telefones celulares, e tem a capacidade de gerar alertas sobre os padrões de movimento das pessoas sob vigilância - ou seja, avisos sobre a localização de indivíduos monitorados pelo programa. A Abimde aponta que o software de espionagem israelense utiliza sensores táticos e plataformas analíticas próprias para processar os dados coletados. Conforme divulgado pelo jornal O Globo em março passado, o programa poderia potencialmente vigiar até 10 mil números de celular simultaneamente pelos agentes da Abin.

Uma das preocupações quanto à legalidade do uso do First Mile se relaciona com a possível exploração do protocolo SS7, desenvolvido para facilitar a conexão de redes móveis por operadoras de telefonia em todo o mundo. Através de vulnerabilidades nesse protocolo, ferramentas de espionagem podem interceptar mensagens de texto e chamadas de qualquer usuário, bem como rastrear sua localização em tempo real, uma vez que obtêm informações da localização e conteúdo dos dados armazenados nos dispositivos monitorados, sem o consentimento dos usuários.

No Brasil, a extração de dados e a localização em tempo real de aparelhos telefônicos - por meio de falhas no protocolo SS7, por exemplo - normalmente requer autorização judicial, o que suscita dúvidas quanto ao uso do First Mile pela Abin. A ONG Data Privacy, que atua no campo do direito digital no Brasil, também observa que as falhas nesse protocolo representam uma clara violação da privacidade dos cidadãos vigiados.

Os contratos da empresa israelense com o governo brasileiro não se limitam apenas ao programa First Mile. Um notório acordo, feito sem licitação, ocorreu durante o governo de Mauro Mendes (União Brasil) no estado de Mato Grosso. Através da Secretaria de Segurança Pública, a Polícia Civil firmou um contrato de R$ 4,6 milhões em junho de 2022. O documento, obtido pela Pública, revela o poder da ferramenta adquirida conhecida como GI2S, que opera de forma a não alertar as operadoras de telefonia celular de que a rede está sendo monitorada. Isso possibilita atividades secretas e o uso disfarçado dos dispositivos monitorados pelos policiais civis.

Em março passado, o jornal A Gazeta Digital revelou a aquisição desse produto, o que fez Emanuel Pinheiro, adversário político do prefeito de Cuiabá, Mauro Mendes, solicitar investigação sobre a compra. O caso foi encaminhado ao Ministério Público Estadual, que, meses depois, em agosto, arquivou a investigação. Documentos obtidos pela Pública apontam contradições entre as informações fornecidas pelo governo sobre o potencial uso do GI2S e a verdadeira capacidade do aparelho de espionagem, conforme descrito no contrato assinado com a Cognyte pela gestão Mauro Mendes.

A Polícia Civil utiliza o produto israelense GI2S, que se baseia em uma técnica patenteada pela Cognyte há mais de uma década, chamada IMSI Catcher. IMSI refere-se a um número de 15 dígitos presente em todos os telefones celulares, uma espécie de identificação do aparelho. Com esse número, o produto é capaz de invadir telefones sem que seus proprietários percebam, rastreando qualquer pessoa que utilize esses dispositivos durante a operação.

O governo de Mauro Mendes adquiriu essa ferramenta israelense sem a necessidade de licitação, uma prática comum no mercado de tecnologia de espionagem, como revelado pela Pública. A justificativa da Secretaria de Segurança Pública de Mato Grosso para a compra do aparelho é reveladora. O anexo do contrato, obtido pela Pública, detalha que "utilizaremos todas as tecnologias necessárias e disponíveis para rastreamento e localização de alvos, com ações ativas e passivas, permitindo desde o acompanhamento de movimentos do alvo, com respectivos alertas pré-programados, até o uso de tecnologias para localização precisa e captura do mesmo."

A ausência de um processo de licitação pública é um elemento de destaque nesse caso. Sem licitação, o governo de Mauro Mendes precisou especificar exatamente o que buscava com a compra, incluindo detalhes técnicos, para obter a aprovação do negócio pela Procuradoria-Geral do Estado (PGE) de Mato Grosso. Essas informações, descritas no anexo do contrato, revelam a verdadeira capacidade do GI2S.

O aparelho opera de forma a não alertar as operadoras de telefonia celular de que a rede está sendo monitorada, permitindo a extração dos números de série do chip e do telefone dos alvos, além de obter a distância aproximada entre o sistema GI2S e o dispositivo monitorado em metros. Isso possibilita a realização de atividades secretas e o uso dissimulado do dispositivo pelos policiais mato-grossenses.

Além disso, a ferramenta da Cognyte permite invasões ativas, através da entrega automática de SMS predefinidos para qualquer telefone capturado, o que é relevante, uma vez que o governo de Mato Grosso defendeu a compra do GI2S perante o Ministério Público Estadual alegando que se tratava de uma ferramenta passiva.

O GI2S é composto por duas partes: uma física, um dispositivo móvel que pode ser colocado em uma maleta e transportado para locais como prisões durante rebeliões ou veículos durante emboscadas, permitindo que a equipe de campo realize operações de forma encoberta. A outra parte é virtual, um programa que controla o dispositivo móvel à distância e pode ser instalado em computadores, laptops e smartphones. Através do software de comando do GI2S, os operadores podem escanear as frequências da região e listar todos os dispositivos de comunicação detectados dentro do alcance do produto. Isso permite a coleta de números de série dos dispositivos, a operadora e a frequência de internet usada pelos alvos durante a operação, bem como suas posições GPS, entre outros dados sensíveis, sem o conhecimento dos usuários dos telefones hackeados.

A ferramenta também é capaz de criar mapas de calor que mostram a movimentação dos alvos, indicando as áreas de maior probabilidade de localização dos mesmos para os operadores. O GI2S ainda oferece a funcionalidade de operação programada, que permite a coleta automatizada de dados de forma não supervisionada, permitindo que os policiais coloquem o dispositivo em um local oculto para operações prolongadas sem a necessidade de controle direto.

A Pública obteve, por meio da lei de acesso à informação, o contrato entre a Polícia Civil do estado do Pará e a Cognyte, firmado em outro momento de 2021. De acordo com os documentos, o governo de Helder Barbalho (MDB-PA) comprou outro software, o Clarian Advanced, da Cognyte, também sem a necessidade de licitação, e que prevê a "interceptação, análise e solução para telefonia." O contrato teve um custo de R$ 7,8 milhões para o estado.

Na época em que o suposto esquema de vigilância e perseguição contra jornalistas críticos à administração de Mauro Mendes foi revelado pela Pública em janeiro passado, o GI2S já estava em posse da Polícia Civil. O estado de Mato Grosso tem um histórico de casos semelhantes na esfera política, incluindo o escândalo das supostas escutas telefônicas ilegais que ocorreram entre 2014 e 2017 durante o mandato do ex-governador Pedro Taques, conhecido como "Grampolândia Pantaneira."

O Ministério Público de Mato Grosso pediu recentemente o arquivamento da investigação envolvendo a Cognyte. O pedido foi assinado em 18 de agosto pelo então subprocurador-geral de Justiça do estado, Marcelo Ferra de Carvalho. No entanto, a Pública encontrou lacunas na investigação com base em documentos oficiais relacionados à mesma compra.

No raciocínio que levou ao arquivamento do caso, o subprocurador-geral não faz referência a informações contidas no anexo do contrato da Cognyte com o governo, onde estão detalhadas as verdadeiras capacidades do aparelho e os objetivos da gestão de Mendes ao adquiri-lo. No documento de pedido de arquivamento, o subprocurador-geral menciona um ofício do então coordenador de Inteligência Tecnológica do governo do estado, delegado Eduardo Rizzoto de Carvalho, que descreve o aparelho da Cognyte como uma "ferramenta passiva."

Entretanto, no anexo do próprio contrato assinado com o grupo israelense, a Secretaria de Segurança Pública de Mato Grosso descreve: "Utilizaremos todas as tecnologias necessárias e disponíveis para rastreamento e localização de alvos, com ações ativas e passivas."

Além disso, no pedido de arquivamento, o subprocurador-geral relata como a Procuradoria-Geral do Estado (PGE/MT) investigou a compra do aparelho de espionagem após a denúncia na imprensa local. A PGE se reuniu com a delegada-geral da Polícia Judiciária Civil, Daniela Silveira Maidel, em março, quando o caso veio à tona, "para que fossem esclarecidas as polêmicas em torno do assunto." Também consultou o coordenador da área de inteligência da polícia, que afirmou que o aparelho "não é capaz de realizar interceptação telefônica, telemática ou de dados."

O programa GI2S não é exclusivo de Mato Grosso; outros estados também o adquiriram. O Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa de São Paulo é um desses exemplos, como investigado pela Pública. O governo de São Paulo adquiriu o programa da Cognyte pela primeira vez em 2017, e o atual governo de Tarcísio de Freitas renovou seu uso, conforme consta no Diário Oficial do Estado.

Em 9 de março deste ano, o estado de São Paulo assinou um contrato no valor de R$ 8,9 milhões relacionado à "aquisição de sistema de radiofrequência para Polícia Militar do Estado de São Paulo." É importante notar que este contrato foi firmado cinco dias antes do caso First Mile ser revelado pelo jornal O Globo. A compra foi anunciada no Diário Oficial de São Paulo em 13 de abril, mais de um mês após a assinatura do contrato.

O Diário Oficial também revela que o governo de Ronaldo Caiado em Goiás foi um dos primeiros a adquirir ferramentas da Cognyte em 2020, após a compra inicial da Abin. Não foram divulgados detalhes sobre o valor gasto pelo governo Caiado, mas a Pública solicitou esclarecimentos sobre o contrato via Lei de Acesso à Informação, e o pedido foi negado.

Meses após a compra pelo governo de Goiás, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) investiu R$ 5 milhões em produtos da Cognyte. Em 21 de setembro de 2021, a gestão de Silvinei Vasques, que atualmente está preso, assinou um contrato de cinco anos para serviços de manutenção, suporte, migração do sistema Verint (nome anterior da matriz da Cognyte) Web Intelligence e treinamento oficial para uso da ferramenta.

Em julho de 2022, o governo de Wilson Lima, no Amazonas, também adquiriu produtos da empresa israelense no valor de R$ 5,9 milhões. A Polícia Civil do estado fechou a compra de um "equipamento satelital para identificação, rastreamento, monitoramento e interceptação de indivíduos em atividades relacionadas ao tráfico de drogas em ambiente urbano e florestal" para o Departamento de Investigações sobre Narcóticos (DENARC).

 


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