Governo deve regular bets, não tutelar os mais pobres, diz um dos pais do Bolsa Família
BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) - Considerado um dos pais do Bolsa Família, o economista Ricardo Paes de Barros afirma à Folha que a maior penetração das apostas esportivas, chamadas bets, não é um problema apenas das famílias mais pobres, mas de toda a sociedade brasileira.
Segundo ele, tutelar os beneficiários do programa social e suas escolhas de consumo não vai resolver o problema, que só terá solução com regulação mais robusta das apostas para limitar sua propaganda e ações de educação financeira para a população.
"A gente está dando para os pobres brasileiros a liberdade deles escolherem com o que eles querem gastar. E eu acho que isso deve ser a maneira correta de fazer as coisas", diz Paes de Barros.
"Em vez de cercear as alternativas do pobre e focar no que o cara pode ou não pode fazer com o dinheiro dele, eu trataria disso [regulação das apostas]. O Brasil precisa saber se isso pode ou não pode, ou quais são os limites dessa coisa", acrescenta.
Dados divulgados pelo Banco Central em setembro mostraram que beneficiários do programa gastaram cerca de R$ 3 bilhões em bets só no mês de agosto. Embora o próprio BC tenha reconhecido possíveis falhas no estudo, a divulgação deflagrou um amplo debate sobre a adequação dos gastos dessas famílias.
Integrantes do governo defenderam medidas para impedir os beneficiários de usar os recursos recebidos do Bolsa Família para bancar apostas. O STF (Supremo Tribunal Federal) determinou a adoção de medidas nessa mesma direção.
Nesta quinta-feira (12), a AGU (Advocacia-Geral da União) recorreu da decisão judicial sob o argumento de que não tem meios técnicos para impedir beneficiários do Bolsa Família de gastar o dinheiro do programa com apostas, uma vez que os recursos são depositados em conta bancária também abastecida com outras rendas. Em outras palavras, dinheiro não tem carimbo.
Segundo Paes de Barros, apostar não é um consumo razoável "nem para o pobre, nem para o rico, nem para ninguém". "Não é só o dinheiro do Bolsa Família que está sendo mal gasto. O cara está trabalhando e [também] está usando mal o dinheiro dele", afirma.
Ele ressalta ainda que muito provavelmente os mais pobres já gastam dinheiro do programa com artigos que não seriam tão saudáveis, como cigarro ou bebidas alcoólicas, sem que isso tenha gerado comoção dos demais setores da sociedade.
No entanto, produtos de tabaco e álcool já são fortemente regulados no Brasil, com regras específicas de publicidade, ao contrário do que acontece com as bets. Para o especialista, é um erro permitir a proliferação das apostas sem o devido controle na propaganda e no acesso.
"Cigarro não pode nem ter propaganda. Bebida pode ter alguma, mas o cara sempre termina dizendo 'beba com cuidado'. Eu não entendo como a gente pode ser tão liberal na propaganda disso [bets]. Isso é um jogo, num país que combateu o jogo do bicho, combate até hoje. Eu não faço ideia de por que a gente está sendo tão generoso com esse tipo de jogo", diz.
Em sua visão, o problema escancarou a falta de educação financeira dos brasileiros, que veem nas bets uma falsa ilusão de investimento com elevado retorno financeiro.
"Ninguém está fazendo o cara engolir a aposta. O cara está escolhendo a aposta. Se ele está escolhendo a aposta, e a gente acha que é uma escolha inadequada, é porque ele não está suficientemente educado", afirma.
Paes de Barros avalia que o problema é uma oportunidade para investir na educação financeira da população, com foco no público mais vulnerável que tende a sentir de forma mais dura as consequências de perda de dinheiro no jogo.
Ele sugere incorporar ao Bolsa Família alguma condicionalidade que envolva lições de educação financeira para os beneficiários. Hoje, o programa já faz exigências quanto à vacinação e frequência escolar de crianças e adolescentes.
"Está acendendo uma lâmpada: nossa população gasta dinheiro com bobagem. Isso quer dizer que eu tenho que trocar essa hiperpropaganda que existe [das apostas] por uma hiperpropaganda da importância de você gastar o seu dinheiro direito. Meio utópico, mas no fundo é isso", afirma Paes de Barros.
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