Trump não quer demitir Powell, ele quer um bode expiatório, diz expert no Fed
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SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - O mercado financeiro mal se acalmava com o recuo nas tarifas, quando o governo de Donald Trump apareceu com um novo motivo de pânico: demitir o presidente do banco central, Jerome Powell -algo que, a rigor, está fora de sua alçada e que o presidente americano negou ter intenção de fazer nesta terça-feira (22)

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Independentemente da lei, o republicano fez uma série de ameaças ao chefe do Fed (Federal Reserve) nos últimos dias. No discurso, Trump acusa a autoridade monetária de agir politicamente ao pausar os cortes de juros que havia iniciado no ano passado, durante o governo Joe Biden. Powell rebate que as tarifas colocam as metas de emprego e inflação do banco em risco.
Mas, para David Wessel, tudo isso é teatro. Em entrevista à Folha de S.Paulo ele diz que Trump até gostaria de substituir Powell, mas seu real objetivo com os ataques é poder culpar o Fed pela recessão vista por analistas como cada vez mais provável nos EUA.
Atual diretor do Centro Hutchins de Política Fiscal e Monetária, com sede em Washington, Wessel trabalhou durante 30 anos no Wall Street Journal, onde foi responsável pela cobertura do BC americano. Em 2009, publicou o best-seller "Os Bastidores da Crise", livro sobre a atuação do Fed sob Ben Bernanke durante a crise financeira global de 2008. É vencedor, em equipe, de dois prêmios Pulitzer.
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PERGUNTA - Como evoluiu a independência do Fed? O sr. acredita que ela está em risco agora?
DAVID WESSEL - O ponto de virada do Fed foi a inflação do final dos anos 1970 e início dos 1980, quando Paul Volcker [presidente do Fed de 1979 a 1987] forçou uma recessão profunda para quebrar o ciclo inflacionário. É preciso, porém, fazer uma distinção entre independência e crítica. Durante o governo George H. W. Bush (1989-1993), o presidente e seus assessores criticavam o Fed. O relacionamento entre Alan Greenspan [presidente do Fed de 1987 a 2006] e o secretário do Tesouro era tão tenso que eles pararam de se encontrar. Foi só com a chegada de Bill Clinton (1993-2001) que passou a ser malvisto criticar publicamente o Fed.
Agora, não são apenas as críticas de Trump ao Fed que deixam as pessoas nervosas. É a ameaça constante de que ele vai demitir Powell. Todo mundo sabe que em maio do ano que vem o presidente poderá indicar uma nova pessoa. A dúvida que fica é: ele vai escolher alguém que acredita na independência do Fed, ou alguém que apenas faça o que ele quer?
P - Se ele escolher alguém que apenas faça o que ele quer, quais serão as consequências disso?
DW - Uma coisa que o Trump deveria ter aprendido com Powell é que alguém pode dizer coisas agradáveis durante a entrevista, mas quando chega ao Fed e sabe que está sucedendo figuras como Volcker, Greenspan e Ben Bernanke [presidente do Fed de 2006 a 2014], e está cercado por pessoas que acreditam na independência do Fed... Essa pessoa também tem sua própria reputação a zelar.
Acho altamente improvável, embora não impossível, que o próximo presidente do Fed simplesmente chegue dizendo "vamos cortar os juros porque Trump quer". Na verdade, Trump pode descobrir que, se colocar alguém que o mercado acredita que vai obedecê-lo, essa pessoa pode ter que adotar uma política monetária mais rígida para ganhar credibilidade.
Acho que é possível que Trump indique um dos nomes sendo cogitados: Kevin Warsh [diretor do Fed de 2006 a 2011, indicado por Bush], Chris Waller [atual diretor do Fed indicado por Trump em 2020] ou Scott Bessent [atual secretário do Tesouro]. Todos esses são pessoas que se importam com sua reputação e com a credibilidade do Fed.
P - Foi o próprio Trump quem nomeou Powell presidente em seu primeiro mandato. O que o levou a fazer essa escolha, e como a relação entre os dois tornou-se tão tensa?
DW - Qualquer pergunta que começa com "por que Trump..." é muito difícil de responder [risos].
Sabemos que Warsh era um dos candidatos. Segundo relatos da época, Steve Mnuchin, então secretário do Tesouro, apoiava Powell. Outra opção era reconduzir Janet Yellen [presidente do Fed de 2014 a 2018]. Trump frequentemente diz que acha que certas pessoas têm "cara de banqueiro central", e tanto Powell quanto Warsh se encaixam nesse perfil. Supostamente, ele achava que Yellen era baixa demais para o cargo.
Suspeito que Powell foi muito discreto durante a entrevista. Trump passou a atacá-lo [no primeiro mandato] somente após se irritar com suas políticas. Agora, o que Trump está tentando fazer é culpar o Fed antecipadamente, usá-lo como bode expiatório. Ele sabe que os economistas preveem uma recessão nos próximos 12 meses, e não quer admitir que a causa são suas tarifas.
P - Sei que é difícil entender o que o presidente pensa, mas o sr. realmente não acha que, se pudesse, Trump demitiria Powell agora?
DW - Acho que ele genuinamente gostaria de substituir Powell, mas, por enquanto, é só encenação. Suponha que amanhã ele diga "entendo que a lei limita minha capacidade de demitir Powell como diretor, mas vou removê-lo como presidente do Fed". Primeiro, o mercado entra em pânico. Depois, Powell recorre à Justiça -ele não é tão rico quanto Harvard, mas tem dinheiro suficiente para atrasar o processo. E mais: a governança do Fed é complicada. O Comitê Federal de Mercado Aberto [FOMC, responsável pela definição dos juros], composto por sete diretores e 5 dos 12 presidentes regionais dos bancos, é quem elege seu presidente. Então, eles poderiam simplesmente reeleger Powell.
O mandato de Powell termina em maio de 2026. Não está tão longe. Por que criar toda essa polêmica se Trump pode simplesmente nomear alguém para substituí-lo e deixar tudo pronto para a transição? Se eu fosse -Deus me livre- o secretário do Tesouro de Trump, eu mostraria gráficos do mercado de ações e de títulos e diria: "chefe, quer piorar ainda mais isso?". Trump é sensível ao mercado.
Diretor do Fed - Prazo do mandato
Adriana Kugler* - Janeiro 2026
Jerome Powell# - Janeiro 2028
Christopher Waller* - Janeiro 2030
Michael Barr* - Janeiro 2032
Michelle Bowman - Janeiro 2034
Philip Jefferson* - Janeiro 2036
Lisa Cook - Janeiro 2038
* Pode ser reconduzido. # Atual presidente, cujo mandato à frente do Fed termina em maio de 2026.
P - O mercado de títulos já mostra uma perda de confiança nos EUA. O sr. acredita que esse cenário possa se deteriorar mais, a ponto de investidores buscarem segurança em outro lugar?
DW - Parte disso depende se o governo vai recobrar o bom senso. Outro fator é que o Congresso está avançando com medidas que vão aumentar ainda mais a nossa dívida.
Mas temos uma grande vantagem, que é: se você não quer colocar seu dinheiro nos EUA, onde mais vai colocar? Há uma quantidade limitada de ouro no mundo para comprar -e ouro não paga juros. Acho que as pessoas não vão colocar dinheiro na China porque não sabem se conseguirão tirá-lo de lá. A Europa pode ganhar uma fatia maior do mercado, mas também tem seus problemas.
Não há muitas alternativas boas na escala que o mundo precisa. Isso ainda vai nos sustentar por um tempo. Mas pode ser que, daqui a uma década, olhemos para trás e vejamos esse momento como um ponto de inflexão.
P - Se Trump conseguir minar a independência do Fed, que efeitos isso pode ter sobre bancos centrais de outros países?
DW - Boa pergunta. Acho que depende do que acontecer aqui. De um lado, posso imaginar pessoas olhando para o Banco do Canadá, o Banco da Inglaterra, o Banco Central Europeu, e dizendo que eles estão conseguindo melhores resultados do que um Fed em deterioração. E aí eles podem se destacar. Instituições como o FMI vão apoiá-los.
Por outro lado, bancos centrais se movem em grupo. Por exemplo, foi o banco central da Nova Zelândia que primeiro estabeleceu uma meta de inflação, e depois houve uma tendência global de adotar esse modelo. Então acho que seria mais difícil, se eu estivesse no Brasil, no México ou na Argentina, argumentar que a independência do banco central é essencial, se o presidente disser: "olha os EUA, eles não acham mais isso".
Mas o pensamento assustador não é que o Brasil vai imitar os EUA, mas sim que nós estamos tentando adotar todos os erros que os mercados emergentes cometeram nos últimos 25 anos. É realmente extraordinário. Trump disse muitas dessas coisas durante a campanha, mas eu certamente não esperava que fosse assim agora.
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RAIO-X | DAVID WESSEL, 71
É diretor do Centro Hutchins de Política Fiscal e Monetária do Instituto Brookings. Foi correspondente e editor de economia do The Wall Street Journal, onde também supervisionou a cobertura do Federal Reserve. É autor de dois best-sellers do New York Times: "Red Ink" (2012) e "In Fed We Trust" (2009). Graduado pelo Haverford College, foi bolsista Knight Bagehot em Jornalismo Econômico na Universidade Columbia. Ao longo de sua trajetória, dividiu dois Prêmios Pulitzer.

ASSUNTOS: Economia