Finados
Dia de Finados, dia tão sinistro como é redundante dizê-lo. Lembro de alguns amigos que se foram neste ano. O corpo nunca adoece antes da alma. A verdade é que passamos a vida adiando o agora. Quantos acenos inconclusos, quando beijos adiados, quantos abraços esquecidos, quanta ternura poupada por conta da máxima cruel de nossa época: "não tive tempo"? É o jantar recusado à amada, a presença-ausente do Dia das Mães, do dia dos Pais, esquecimento sintomático do aniversário de um amigo, o ciúme levando a brigas evitáveis.
Estamos assim desprezando a arte de viver e o encanto que as belezas, inapercebidas por deformação profissional, trazem. Se não o fazemos para que adiantou respirar ou transitar nesse mundo sublunar? Não adianta adiar o mapa do coração, dizer que “amanhã é possível”, “talvez quem sabe”, ou “não sei”. São questionamentos que me acompanham ao transitar, contrito, por esse dia dedicado aos mortos. Já escrevi que não vou a cemitérios, e espero não ter em minha agenda pelo maior tempo possível, nem vivo nem morto.
Nesta iminente quase virada de ano, o este instante pode ser tão vago que, de modo impressentido, tomo-o entre os dedos de oscilantes e trêmulas mãos. Constato que há esquecidos soluços de muitos antigamentes anteriores. Sementes genéticas do final de muitas coisas ocorridas, e o alvorecer de outras. Amanheço com a sensação de, durante a noite (os sonhos, quero dizer) ter sido um prisioneiro, dentro daqueles parâmetros de Proust, em busca do tempo perdido. Dentro das memórias audíveis voltarei, e todos nós, em um dia qualquer de 2025 à convivência do que passou em 2024. Um colecionador de sonhos do ano que termina. Eis o meu trabalho, diuturno. Até dos meus próprios fósseis, quando caminho em busca daquela luz, no final do túnel deste expirante 2024, que estará apagada dentro de 59 dias. Ouvir-se-ão, amanhã, os primeiros vagidos dos dias de novembro. Vago e impreciso nas definições, frases talvez desconexas, desativadas.
Misturo preâmbulos de cogitações. Embrulho depois tudo, em papel celofane, ponho endereço, levo-o aos Correios, sob registro. Alguém (ou ninguém, talvez seja este meu objetivo) entretanto nada irá receber. Durma-se com um barulho desses, dirá o(a) leitor(a). O este instante de agora é semente reprodutora daqueles outros, dos amanhãs que virão. Há verdes circundantes, nuvens prenunciam chuvas, dentro da escaldante Manaus. A coisa mais injusta sobre a vida é a maneira como ela termina. Alguém já disse e eu também acho, que o verdadeiro ciclo da vida está todo de trás pra frente. Nós deveríamos morrer primeiro, nos livrar logo disso. Saudades dos que partiram, e escrevo tudo isso pelo Dia de Finados.
ASSUNTOS: Espaço Crítico