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Nós e a Violência Manauara


Por Flávio Lauria

08/06/2024 6h55 — em
Espaço Crítico



O título se refere a Manaus, mas pode ser estendido para todo o planeta, inclusive Nova Iorque e Jamaica, o país mais violento do mundo. Está muito em moda, nos últimos dias, falar em segurança. Sobretudo depois do impacto das imagens da violência em Manaus, com assaltos em ônibus, assaltos em ruas, que entraram pela TV direto na alma dos espectadores, vindo acordar um sentimento antigo de desproteção. Um sentimento que carregamos desde os primeiros momentos de vida e que por vezes gostamos de visitar em filmes de terror, nos trens fantasmas dos parques de diversão, para exercitar nosso controle sobre ele e mostrar para nós mesmos que somos capazes de dominá-lo: o medo.

Cenas com um potencial explosivo de nitroglicerina, que provocaram no governo a atitude de um pai cujo filho desperta gritando à noite com medo do bicho-papão e a quem ele tem que consolar dizendo que vai fazer alguma coisa com o bicho-papão, mas que não sabe o quê. Você, que não mora mais na sua cidade, vive sitiado em sua casa, por trás dos muros com que tenta separar o espaço da sua família do território livre ocupado pelos bandidos; você, que a cada assalto de que sai vivo agradece a Deus pela graça recebida, mas não perde o tempo de ir até a polícia; você, que enfrenta diariamente a roleta-russa que é atravessar o território “deles” para ir de casa até o trabalho e voltar, sem levar um tiro; você, que paga um terço da produção nacional em impostos para viver no meio dessa guerra que mata mais que as “de verdade”, que comovem o mundo, como a da Iugoslávia, já sabia de tudo isso.

Mas “eles” insistem em não ver. Há um sistema que faz do crime um dos poucos negócios seguros do Brasil. Pelos bastidores do “sistema” de cada mil assaltantes, estupradores e assassinos pegos armando as tragédias de que você é a vítima, 999 escapem incólumes, sem pagar nada pelo que fizeram. Para você, as tragédias são reais. É a sua vida que se vai ou se arrebenta, pela bala perdida ou pela bala dirigida. Mas, para o “sistema”, tudo não passa de um jogo onde assassinato se chama “infração” e onde, dessa “infração” para baixo, tudo é permitido. Nesse jogo, o coitado não é quem morre. É quem mata. Não importam os fatos, as histórias de carne e osso. O que importa é o ritual que para ele se criou e que o “sistema” cultua, acima de tudo.

Um ritual movido a dinheiro, feito não para exumar a verdade e punir o crime, mas para fazer durar as causas e para tornar imprescindíveis os advogados. Um ritual onde os regimentos, os carimbos e os prazos, que mantêm próspera a indústria que se abriga nos suntuosos palácios da “Justiça”, são mais importantes que a verdade ou a vida, a culpa ou a inocência. Há erros por todos os lados nessa trajetória que leva do crime à ausência de castigo. São dois os combustíveis que alimentam o “sistema” que alimenta o crime: a corrupção e a covardia. Mas é a covardia – a covardia política, em especial – o primeiro elo dessa cadeia.

Todos contribuímos com o nosso quinhão dela, para isso que está aí. É covardia a de todos que “não queremos saber”, que levamos a vida desviando das balas, “dando jeitinhos”, e não nos rebelamos. É covardia a dos autores das leis que põem os interesses dos criminosos à frente dos das vítimas. É covardia a da mídia que adere incondicionalmente ao discurso dos que negam as evidências que você conhece e insiste em que se procure a solução para a violência que diariamente o atinge apenas onde ela manifestamente não está.

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