Entenda o que está acontecendo na guerra civil da Síria
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A surpreendente tomada de Aleppo por rebeldes contrários à ditadura de Bashar al-Assad na Síria recolocou a guerra civil no país árabe no topo do noticiário internacional, mas na realidade é apenas uma consequência lógica da turbulência que afeta o Oriente Médio desde o 7 de Outubro.
O ataque terrorista do Hamas palestino contra Israel em 2023 abriu uma caixa de Pandora regional. O propalado "redesenho do Oriente Médio" do premiê Binyamin Netanyahu, resultante do acerto de contas a que o Estado judeu se dispôs, pode gerar frutos inesperados e indesejados por Tel Aviv.
Ao enfraquecer a posição do Irã e de seu principal preposto na região, o Hezbollah libanês, Israel concedeu uma janela para as forças de oposição a Assad se mexerem.
Desde 2015, quando retomou a iniciativa à beira da derrota, Damasco contou com o consórcio Irã/Hezbollah em terra e com as forças da Rússia pelo ar. Deu certo e ele controlava até sexta (29) 70% de seu país. Agora, as coisas estão instáveis novamente.
A guerra de Gaza espalhou-se para o Líbano, desestruturando o Hezbollah e deixando o Irã exposto. Mesmo com o atual cessar-fogo com Israel, o grupo libanês está imobilizado e não poderá intervir em favor de Damasco.
A oposição síria, diga-se de passagem, é uma colcha de retalhos também.
A ofensiva contra Aleppo foi liderada pelo HTS, sigla árabe para Organização para a Libertação do Levante, um grupo saído de uma costela da rede terrorista Al Qaeda em 2016. Na realidade, é uma coalizão de cinco milícias principais e seis, secundárias, e nenhuma delas é exatamente fraternal com as outras.
Seu líder, Abu Mohamed al-Joulani, é um terrorista conhecido por crueldade, que bebe na fonte do radicalismo islâmico que inspira os jihadistas da região desde os anos 1920. Isso o torna um parceiro dos menos ideais para os atores que vendem moderação na oposição síria.
O que não quer dizer que não trabalhem juntos. As milícias seculares apoiadas pela Turquia participaram da ação, e forças do Curdistão sírio coordenaram a ocupação de cidades e partes de Aleppo, a segunda maior cidade síria, com os fanáticos de Joulani.
Isso reflete o cipoal que sempre marcou as lealdades no campo de batalha do país desde 2011. A paz precária que reinava desde que Vladimir Putin e Recep Tayyip Erdogan assinaram um cessar-fogo e estabeleceram um modus operandi conjunto em suas áreas de interesse parecia ter ordenado um pouco a confusão.
Isso será posto à prova agora, justamente pelo cenário externo. Apesar de ser um inimigo declarado, Assad é útil a Israel, ao Irã, à Turquia e aos países do golfo Pérsico, cada um por um motivo diferente. O que os une é a ideia de alguma estabilidade no combalido tecido social sírio.
Para ficar em rivais diretos: se Assad cair, a fragmentação inevitável do país geraria um campo fértil para o terrorismo islâmico ameaçar Israel. Já o Irã perderia seu ponto focal de coordenação com grupos da região, Hezbollah à frente.
Para os turcos, que desde o fim de 2022 vivem uma aproximação cautelosa com o Irã, é uma oportunidade de ocupar espaços com os grupos que sustenta na Síria. O problema é que uma anomia abriria espaço também para o fortalecimento de seus rivais curdos, que já ocupam uma grande fatia do norte da Síria.
Por fim, há o fator Rússia. Aqui, outra guerra, a da Ucrânia, dificultou a vida de Assad. Putin já não tem tantas capacidades instaladas na sua base em Hmeimin, por necessitar de caças, bombardeios e sistemas antiaéreos para emprego na Europa.
O foco do Kremlin na Ucrânia tem tido efeitos em outras frentes também, como nos protestos contra as inclinações pró-Rússia do governo da Geórgia, que pode virar uma dor de cabeça maior para Putin no Cáucaso, após ter perdido controle político da Armênia e visto a Turquia estabelecer uma cabeça de ponte na região.
Do ponto de vista militar, a queda de Aleppo é desagradável, mas não fatal para o controle de Assad sobre o país. Perigo maior é a eventual descida da ofensiva rumo a sul, na estrada que vai de Hamã a Homs e, dali, a Damasco.
Tudo parece depender da capacidade instalada da ditadura de se defender e do quão efetivo será o apoio russo e iraniano, enfraquecido por motivos diversos. Além disso, é preciso entender qual será o papel de fato assumido pela Turquia.
Os próximos dias e semanas definirão, portanto, se o mundo está diante de um redesenho definitivo e imprevisível da Síria ou apenas mais um capítulo localizado da guerra que sangra o país desde 2011.
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