Pela primeira vez, indígenas relatam à Justiça ataques sofridos durante a abertura da BR-174
Manaus/AM - Helicópteros que sobrevoavam as aldeias derramando veneno e detonando explosivos sobre centenas de indígenas reunidos para celebração de rituais de passagem. Sucessivos ataques a tiros, esfaqueamentos e degolações violentas praticadas por homens brancos fardados contra indígenas sobreviventes dos ataques aéreos. Tratores que passavam destruindo roçados, locais de passagem e antigas capoeiras de aldeias centenárias – locais sagrados para os indígenas.
Essas foram algumas das cenas de horror descritas por seis indígenas waimiri-atroari, durante audiência judicial histórica realizada na própria Terra Indígena Waimiri-Atroari, na divisa entre os Estados do Amazonas e Roraima, como parte da tramitação de ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal (MPF) no Amazonas para responsabilizar e cobrar do Estado brasileiro a reparação e indenizações pelas violações cometidas contra os indígenas da etnia durante a abertura da BR-174, no período da ditadura militar.
Essa foi a primeira vez que os kinja, como se autodenominam, falaram abertamente sobre as memórias do genocídio praticado contra eles entre os anos 70 e 80. Os ataques e as doenças levadas após o contato com os não indígenas reduziu drasticamente a população do grupo e quase os levou à extinção, resultando em impactos irreparáveis para os modos de vida desse grupo étnico. Ouvidos na condição de informantes, seis sobreviventes dos ataques contaram em detalhes, por mais de seis horas, como os homens brancos de uniforme “cor de mato” entraram armados em suas terras, destruíram locais sagrados e provocaram a morte de crianças, adolescentes e adultos de aldeias inteiras.
Um dos depoimentos mais fortes apresentados à Justiça na audiência, prestado por um kinja que sobreviveu, quando adolescente, a um ataque aéreo e terrestre contra uma aldeia localizada nas proximidades do traçado da rodovia BR-174, relatou que os indígenas ouviram muito barulho vindo de cima e não sabiam do que se tratavam. Pouco tempo depois, começaram a sentir muito calor no corpo, não conseguiam mais andar e ficaram todos “muito doentes”, em decorrência de veneno jogado do alto. Ele contou ainda que, depois que se ver praticamente sozinho em meio aos corpos de seus pais e irmãos e dos demais indígenas presentes, testemunhou homens brancos entrarem na aldeia por terra, armados com facas e revólveres.
Apenas parte dos corpos dos indígenas mortos puderam ser queimados pelos indígenas que chegavam aos locais dos ataques após os fatos. Outra testemunha relatou que, por medo de ocorrer um novo massacre, eles tiveram de deixar muitos corpos para trás e procuraram abrigo em áreas mais distantes, mata adentro, para organizarem-se e resistirem contra os desconhecidos homens brancos, suas armas e máquinas. Quase todos os informantes ouvidos relataram ainda terem vivenciado episódios de ameaças por parte de militares do Exército, durante o período de construção da rodovia, tendo armas apontadas para suas cabeças e tiros disparados na mata.
Audiência histórica – Para o coordenador do GT Povos Indígenas e Regime Militar, Julio José Araujo Junior, os depoimentos contundentes concedidos dentro da terra indígena representam um momento histórico na busca pela efetivação da Justiça de Transição e para a luta do movimento indígena e das instituições de proteção aos direitos indígenas no sentido de fazer com que as especificidades socioculturais desses povos sejam consideradas pelo Estado em todas as esferas, desde a realização de uma audiência pela Justiça até a realização de consulta prévia, livre e informada para estudos e implementação de grandes empreendimentos com potenciais impactos as indígenas, seus territórios e modos de vida.
A ação que motivou a audiência na terra indígena foi apresentada pelo MPF em agosto de 2017 e recebeu decisão liminar favorável em janeiro de 2018, condicionando a implementação de grandes empreendimentos capazes de causar grande impacto na terra indígena ao consentimento prévio dos waimiri-atroari. No entanto, a decisão liminar foi derrubada pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) e o processo seguiu em tramitação na primeira instância.
A audiência foi presidida pela juíza federal substituta da 3ª Vara da Justiça Federal no Amazonas, Raffaela Cássia de Sousa e foi acompanhada por representantes legais de todas as partes do processo – Associação Waimiri-Atroari, Advocacia-Geral da União, Fundação Nacional do Índio (Funai) e Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit). O processo segue em tramitação na 3ª Vara Federal do Amazonas, sob o número 1001605-06.2017.4.01.3200, e aguarda sentença da Justiça.
Doenças de homem branco – Nos relatos apresentados durante a audiência, os indígenas ouvidos contaram que viviam em paz, tinham alimento e saúde em abundância antes da abertura da estrada. Além dos ataques diretos vivenciados nos primeiros contatos, com o passar do tempo e a consolidação das obras da rodovia, as mortes por doenças até então desconhecidas dos kinja reduziram ainda mais a população. Segundo eles, sarampo, gripe e outras doenças contagiosas vitimaram dezenas de indígenas à época, que morriam sem assistência alguma por parte do Estado.
Depois que a estrada passou pelo território tradicionalmente ocupado pelos waimiri-atroari, os indígenas contaram que viviam sob constante ameaça por parte dos militares, tiveram de mudar o local de algumas das aldeias mais próximas ao traçado da BR-174 e enfrentaram escassez de caça.
Impactos territoriais e genocídio – Em 145 páginas, os procuradores do GT Povos Indígenas e Regime Militar que assinaram a ação fizeram um apanhado aprofundado sobre o povo Waimiri-Atroari e sua história, marcada por violações de seus modos de vida e impedimentos de livre exercício de sua identidade. Os impactos da construção da BR-174 na organização e no território do povo Kinja e o genocídio praticado contra os índios durante a ditadura são apontados pelo MPF com base em documentos, relatórios e depoimentos colhidos durante a apuração do caso.
Como pedidos finais do processo, o MPF exige a reparação dos danos causados, por meio de indenização no valor de R$ 50 milhões, pedido oficial de desculpas e inclusão do estudo das violações sofridas pelos indígenas nos conteúdos programáticos escolares, e requer também garantias de direitos para que tais episódios não se repitam. O órgão requer ainda a abertura dos arquivos militares e a reunião e sistematização, no Arquivo Nacional, de toda a documentação pertinente à apuração das graves violações de direitos humanos cometidas contra o povo Kinja, visando ampla divulgação ao público.
Na ação, o órgão sustenta que o conjunto de provas apresentadas à Justiça “demonstra que o Estado brasileiro promoveu ações baseadas nas políticas de contato e de ataques diretos aos indígenas que causaram a redução demográfica do povo Waimiri-Atroari em larga escala”. O relatório da Comissão Nacional da Verdade aponta, com base em dados oficiais, que houve uma redução de 3000, na década de 70, para apenas 332 indígenas vivos na década de 80, período de maior atividade do empreendimento de construção da rodovia.
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