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A metáfora da mala desfeita


Por Públio Caio

24/10/2025 20h59 — em
Públio Caio



Um mês antes, eu reuni pontos das milhas do cartão de crédito e comprei uma passagem para a cidade de Porto Velho/RO, pretendendo visitar minha irmã mais nova. Meus planos era aproveitar o “feriadão”, descansar e “curtir” a companhia da minha irmã e da minha sobrinha-neta” de dois anos de idade; já me imagina correndo pelo imenso pátio e jardim daquela casa maravilhosa, brincar na piscina com ela e depois afogar a saudade no colo da minha irmã, dos sobrinhos e do cunhado. Perfeito!

Planos geram expectativas. Expectativas, se não controladas, geram ansiedade, a neurose da modernidade. Ansiedade, sem complicar, nada mais é do que a má administração das expectativas diante do tempo. Alguns sofrem antecipadamente, por bons ou maus motivos. É isso.

A expectativa é diferente da esperança, enquanto virtude teologal. Nesta, temos a certeza do acontecimento futuro, porque é originado de uma promessa cujo promitente é Deus. Esperamos com convicção um acontecimento que transcende à vontade humana. Na expectativa, esperamos um acontecimento possível e provável, mas, ainda incerto por infinitas variáveis, ou seja, pode ou não acontecer o evento esperado (expectado).

Porém, seja na esperança, e muito mais na expectativa, o nosso espírito não aceita passividade, como quem fica “sentado com a boca cheia de dentes, esperando a morte chegar”, mas reclama atitude ativa, é uma expectATIVA. Isso significa que precisamos trabalhar, ajudando para que aquilo que esperamos com intensidade, no limite de nosso controle, possa acontecer, sendo verdade que uma boa parte foge dele depende de fatores externos ou de terceiros.

Por isso, comprei passagens com antecedência. Quando, porém, nossas expectativas não se realizam, nasce um sentimento de frustração, ou seja, um conflito entre o princípio do prazer e o princípio de realidade, onde o “ego” enfraquecido não consegue lidar com os obstáculos que a realidade impõe. A frustração pode gerar decepção, raiva, tristeza e até mesmo ansiedade.

Eu estava ansioso, em estado de total expectativa, aguardando essa viagem. Arrumei minha mala, poucas roupas, somente o necessário, mas a mala ficou totalmente preenchida com uma coisa volátil, que não pesa, mas preenche espaços, uma coisa chamada saudade. Levaria as minhas para trocá-las, deixando-as lá e trazendo outras que certamente estariam mais fortes.

Comprei passagem para viajar na madrugada do dia 23, 00:45 da manhã. No dia da viagem, às 23:00 peguei minha mala, desliguei aparelhos de tomadas de casa, como de costume, apaguei as luzes e fui para o aeroporto. Entretanto, tamanha a ansiedade, fui traído e, em vez de ir ao aeroporto na noite do dia 22, para embarque no dia 23, fui na noite do dia 23, tentando embarcar num voo impossível, pois o meu voo já havia decolado 24 horas antes.

Perdi o voo, perdi meus planos. Ganhei uma frustração. Retornei pra casa, religuei os aparelhos nas tomadas, coloquei a mala sobre um móvel e de repente me passou uma sensação estranha. Ao voltar pra casa, com a mala na mão, após ligar as luzes, senti a mesma sensação de quem volta de viagem e diz que “viajar é bom, mas voltar é melhor ainda”.

Fiquei longe de casa apenas umas duas horas, mas parecia que havia de fato viajado. O tempo, de novo o tempo, para o qual devemos nos voltar com atenção, me confundiu novamente. Lembrei do meu cachorrinho York Shire, o Theo, que não tinha noção do tempo. Para ele, tanto fazia eu ir até a garagem pegar algo no carro e voltar em 5 minutos, quanto passar 30 dias fora de casa em viagem de férias.

Quando eu retornava, em quaisquer das duas circunstâncias, a alegria dele era na mesma intensidade. Abstraindo as leis e regras da física, o tempo não passa de uma progressão contínua da existência, do passado para o presente e para o futuro. Mas o Theo não tinha consciência do passado, nem do presente. Mas eu, sim.

Pensei em dormir, pois já era madrugada. Mas um impulso me fez mudar de ideia: “vou desfazer a mala e guardar tudo no lugar devido”. Achei que se acordasse mais tarde e visse a mala ainda pronta, aumentaria os efeitos colaterais da frustração, notadamente, a raiva pelo acontecido.

Tirei tudo de dentro da mala e fiquei a contemplá-la vazia. Que sinais a mala desfeita me passava! Então, embarquei na metáfora da mala desfeita. Quantas vezes em nossa existência, arrumamos e desfizemos “malas”, ora felizes, ora frustrados; quantas vezes ficamos sem coragem de desfazer as “malas”, mesmo sendo necessário, pois sabendo que aquela “viagem” não aconteceu ou aconteceria, não ao menos naquele momento.

Quantas vezes deixamos, sem fazer sentido, a mala “pronta”, apenas na expectativa de acontecer uma viagem; quantas vezes apenas esperamos, esperamos, esperamos, olhando a mala pronta ou desfeita; quantas vezes perdemos viagens, traduzidas como as oportunidades que a vida apresentou, que poderíamos fazê-la com ou sem qualquer mala.

Quantas vezes rearrumamos nossa mala, colocando coisas novas ou ficamos presos afetivamente às coisas velhas; quantas vezes colocamos na mala, coisas totalmente desnecessárias, apenas fazendo peso e dificultando nossa viagem.

Perdi o voo porque não dei conta ao tempo e o tempo me confundiu, me preocupando com o tempo mais à frente, esquecendo do tempo presente. O que estamos fazendo com nosso tempo?

Assim diz o poema de Frei Antonio das Chagas:

Deus pede estrita conta de meu tempo,
É forçoso do tempo já dar conta;
Mas, como dar sem tempo tanta conta,
Eu que gastei sem conta tanto tempo?

Para ter minha conta feita a tempo,
Dado me foi bem tempo e não foi conta.
Não quis, sobrando tempo, fazer conta,
Quero hoje fazer conta e falta tempo.

Oh! vós que tendes tempo sem ter conta,
Não gasteis esse tempo em passatempo:
Cuidai enquanto é tempo em fazer conta.

A madrugada avançava. Então, coloquei todas as coisas da minha bagagem nos seus respectivos lugares, e “tudo pareceu estar arrumado” e resolvido. Será?

Peguei minha saudade que ficou comigo, coloquei-a sobre meu travesseiro, desliguei as luzes, e adormeci!

 


** O autor é Procurador de Justiça do MP/AM. Bacharel em Filosofia assíduo estudante de temas teológicos.

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