Palco de tiroteio, Linha Vermelha registrou uma situação de risco a cada cinco dias desde janeiro
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RIO - Já estava escuro e era difícil enxergar alguns metros adiante. Mas o que se ouvia era aterrorizante. Tiros. Muitos tiros. Seguindo o manual de sobrevivência que todo carioca já foi obrigado a decorar, motoristas deixavam seus carros para se proteger, agachados, atrás de muretas. Outros tentavam escapar de marcha a ré. Vários se refugiaram dentro de um Batalhão da Polícia Militar. As cenas de terror que aconteceram na Linha Vermelha, no domingo à noite, vão ficar para sempre na memória de quem se viu em meio ao fogo cruzado. Mas não são mais exceção. A via expressa, uma espécie de cartão de visitas da cidade, já que é trajeto quase obrigatório para quem desembarca no Aeroporto Internacional Antônio Carlos Tom Jobim, tem sido cada vez mais palco de episódios de violência. Segundo levantamento do aplicativo Onde Tem Tiroteio (OTT), houve troca de tiros, arrastões ou outros problemas no local em 41 dias deste ano — o que dá uma situação de risco a cada cinco dias. Segundo a CET-Rio, desde janeiro, a Linha Vermelha foi interditada 14 vezes devido a tiroteios, arrastões ou manifestações.
Desde janeiro, segundo a OTT, ocorreram oito arrastões. Quatro situações foram consideradas de risco, como a presença de homens armados na via. Os problemas mais frequentes, porém, foram os tiroteios, de acordo com o serviço. Vizinha à Maré, a Linha Vermelha sofre não apenas com os confrontos entre policiais e traficantes, mas também com as guerras internas que costumam acontecer dentro do complexo, onde os territórios são dominados e disputados por mais de uma facção criminosa. Nessa rotina de medo, pelo menos 29 trocas de tiros já afetaram a via este ano, segundo o OTT.

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O portal “Fogo Cruzado”, uma plataforma digital colaborativa que registra a incidência de tiroteios na Região Metropolitana do Rio, também tem dados assustadores: em pouco mais de um ano, do dia 5 de julho de 2016, até a tarde desta segunda-feira, teriam sido registrados 128 tiroteios na região, quase um a cada três dias. Doze deles teriam acontecido em plena via expressa. Noventa e três eclodiram na região do Complexo do Maré, com riscos para os motoristas que passavam pela Linha Vermelha e para os moradores da região. Outros 24 ocorreram na Ilha do Governador, mas com potencial para também afetar quem passava pela principal ligação do Rio com a Baixada Fluminense.
Na roleta russa que os motoristas enfrentam ao trafegar pela via, no último domingo foi a vez da enfermeira Pamela Cortez, moradora do Méier, ser afetada pela primeira vez. Ela voltava de São Paulo, com a mãe, quando percebeu uma lentidão, que considerou suspeita, na altura da Favela Nova Holanda. Eram 20h. A hora seguinte foi um pesadelo.
— Vi a lentidão e achei esquisita para aquele horário. Em seguida, ouvi muitos tiros. Fui para fora do carro com a minha mãe e nos escondemos atrás da mureta que separa as duas pistas. Ficamos agachadas, em pânico. Após 30 minutos, as luzes se apagaram. Voltamos para o carro e ficamos no escuro, só ouvindo rajadas — conta Pamela, que conseguiu, depois de mais de uma hora de terror, dirigir na contramão até sair da zona de conflito.
O tiroteio de domingo à noite começou com um confronto entre criminosos das favelas Nova Holanda e Baixa do Sapateiro. Para evitar que motoristas fossem atingidos por balas perdidas, policiais do Batalhão de Vias Especiais e do 22º BPM (Maré) resolveram interditar a Linha Vermelha. Ao chegaram à via, acabaram se tornando alvo dos bandidos. Atacados, os PMs revidaram, intensificando o medo de quem estava ao redor. A polícia também investiga se o tiroteio de anteontem tem relação com uma manifestação que ocorrera horas antes na Avenida Brasil, em protesto contra o desaparecimento de dois moradores do Parque União, comunidade que faz parte do complexo. Cleydson Aleixo Chagas, de 18 anos, e Henrique Silva, de 19, foram vistos pela última vez na noite de quinta-feira, ao saírem de moto da comunidade.
Para o diretor da Associação Brasileira de Profissionais de Segurança do Rio, Vinicius Cavalcanti, a tensão dos motoristas que passam pela Linha Vermelha poderia ser reduzida com a a instalação de um corredor blindado na via expressa:
— Há alguns anos, foi apresentado um projeto à prefeitura de blindar as laterais com vidro resistente, inclusive, a tiros de fuzil. O custo seria pago com publicidade. Outra sugestão é um painel de concreto, o que não justifica, mas lamentavelmente, chegamos num ponto que vivemos uma guerrilha. A criminalidade age fazendo guerra irregular e a gente tenta enfrentar isso com uma legislação que não consegue desencorajar os bandidos.
Nesta segunda-feira, poucas horas após a situação na Linha Vermelha ter saído completamente do controle, o policiamento na via ainda era deficiente. Pela manhã, uma equipe do GLOBO percorreu o local e encontrou apenas dois carros da Polícia Militar. Um deles estava baseado na altura do Parque Alegria, no Caju, e outro fazia uma blitz perto da Favela do Lixão. A operação foi considerada ineficiente por quem passava pela região.
— O problema nessas blitzes é que os policiais não revistam os carros. Eles pedem somente documentos — criticou o funcionário público federal Mauro Nogueira, que passou domingo à noite pela Linha Vermelha pouco antes de o tiroteio começar.
Na tarde de ontem, o policiamento também não era ostensivo. Apenas três patrulhas foram encontradas ao longo dos 25 quilômetros da Linha Vermelha. Deixar agentes em pontos fixos, principalmente na hora do rush, tem sido uma estratégia do Batalhão de Policiamento em Vias Expressas (BPVE) para tentar driblar o déficit de pessoal. E para poupar combustível diante do cenário de crise financeira do estado.
Responsável por patrulhar cerca de 120 quilômetros das principais vias da cidade — além da Linha Vermelha, atua na Linha Amarela, na Transolímpica e na Avenida Brasil — o BPVE conta em tese com 550 policiais, que se revezam em escalas de plantão. Mas este é um número fictício. Segundo o coronel Fernando Salema, comandante do Comando de Policiamento Especializado (CPE), ao qual o BPVE, o Batalhão de Policiamento Rodoviário (BPRV) e outras seis unidades da PM são subordinados, o efetivo atualmente é de apenas 350 agentes, já que pelo menos 200 estão de férias, de licença médica ou em cursos. Efetivamente, diz Salema, o BPVE conta com apenas 120 homens por dia para patrulhar as vias sob sua responsabilidade. Para a Linha Vermelha, são destinados normalmente 86 homens. Mas, descontando as férias, licenças e cursos, sobram 62, segundo o tenente Thiago Hilário, comandante do policiamento nos 25 quilômetros da via.
— Utilizamos duas escalas de serviço. Há policiais que trabalham diariamente somente nos horários de rush, uma equipe de manhã e outra no fim de tarde, e há os agentes que atuam em escala de 24 por 48 horas. Precisamos nos adaptar ao déficit e garantir a segurança dos usuários — disse Salema.
Apesar de a metade da frota da Polícia Militar estar parada por falta de manutenção — reportagem do GLOBO mostrou, semana passada, que dos 6.756 carros, 3.458 estão sem condições de rodar —, Salema garante que 90% da frota do Batalhão de Vias Especiais estão em atividade. Ele atribui o resultado à boa gestão do comandante da unidade, tenente-coronel Walter Silva Júnior, mas acrescenta que alguns empresários, diante da falta de recursos do estado, têm sido solidários e ajudado a manter os veículos.
— O comandante do BPVE faz uma boa gestão de manutenção da frota. Ele adota muitas vezes o esquema de baseamento em que os veículos ficam parados com policiais em pontos-chaves das vias expressas. Isso gera sensação de segurança e traz economia de combustível.

ASSUNTOS: Rio de Janeiro