Botulismo: Um ano após perder todos os movimentos, capixaba celebra renascimento
Presa ao próprio corpo. Foi assim que Desirée Lima de Almeida, de 41 anos, se sentiu durante algum tempo. A cabeça compreendia tudo, mas o corpo não executava as funções desejadas. A fala sumiu. Braços, pernas - e até os dedos -, não se mexiam. Os olhos não abriam. De um dia para o outro, foi preciso “aprender a não morrer”.
A medicina classifica esse quadro como “síndrome do encarceramento”. No caso de Desirée, a suspeita maior é de que ele tenha sido provocado por botulismo: uma doença infecciosa grave e rara que se manifesta como uma síndrome neuroparalítica causada pela ligação irreversível de uma toxina produzida pela bactéria Clostridium botulinum. Na maioria das vezes a infecção se dá pela ingestão de alimentos contaminados. Em setembro, o estado da Bahia registrou surto da doença.
“A doença se manifesta de uma maneira progressiva, pode começar com um sintoma ocular e em poucas horas progredir para uma parada respiratória, como foi o caso da Desirée. Habitualmente, os sintomas têm um caráter descendente e começam a afetar os olhos com visão turva, queda da pálpebra e até afetar a capacidade de deglutir ou mesmo de falar. Com a progressão da doença há uma paralisia do diafragma, responsável pela nossa respiração e a pessoa pode ter uma apneia e uma parada cardíaca na sequência”, explica Polyana Gitirana, infectologista do Vitória Apart Hospital, que acompanhou Desirée desde o início.
Visão e voz
Era uma sexta-feira, 29 de setembro de 2023, quando a professora aposentada percebeu que estava com a visão turva e pediu ao irmão, Oswaldo Baldin, que a levasse ao médico. No caminho para o hospital, Desirée ligou para a irmã Mariangela. A voz já estava diferente, mais fina. Foi na sala de observação do Vitória Apart Hospital, enquanto aguardava a realização de exames, que a professora passou mal: teve uma apneia, seguida de uma parada cardíaca de oito minutos. Após alguns dias, a sedação foi retirada, mas ela não acordava.
“Eu não dava nenhum sinal com o meu corpo, mas a minha mente se mostrou ativa nos exames. Estava neste plano, apesar de não me mover de forma alguma. Tudo em mim paralisou: face, pescoço, tronco, mãos e pés”, conta Desirée.
“Ela ficou quase completamente paralisada. Não conseguia sequer abrir os olhos. No começo, ela só conseguia movimentar dois dedos da mão esquerda.” recorda a infectologista Polyana Gitirana.
Alfabeto adaptado
O gesto esforçado para mover dois dedos de uma das mãos, assinalando que havia sobrevivido, foi percebido pela equipe assistencial que, junto à família da paciente, adaptou um alfabeto para que Desirée pudesse se comunicar.
“A equipe muito sensível, muito atenta, conseguiu perceber que ela tinha esse movimento e conseguia se comunicar através desses dois dedos. Então desenvolvemos uma linguagem com ela: um alfabeto adaptado por nós, em que ela apertava a mão do examinador duas vezes quando era a letra desejada até formar uma palavra. A gente treinou a equipe inteira, foi uma grande mobilização. Depois a gente foi aprimorando, fazendo alguns questionários direcionados para as queixas mais frequentes e ela se comunicava através do aperto de mão”, lembra Polyana.
“A traqueostomia foi feita e o respirador passou a ser o meu jeito de viver. Nunca imaginei ter que aprender a não morrer. Os olhos fechados podiam enxergar se as pálpebras fossem abertas por alguém. Os ouvidos atentos, apesar do volume diminuído, captavam sons, ruídos e palavras ao redor, mas eu não emitia qualquer um destes ou esboçava qualquer reação. A tetraplegia e a não movimentação dos músculos da face me deixavam em um mundo só meu”, afirma a professora.
Foram seis meses de internação, sendo dois de cuidados intensivos na UTI do Vitória Apart Hospital. Foram necessários cinco meses para que Desirée conseguisse sua maior vitória: respirar sozinha.
Recomeçar
“Ainda totalmente dependente e com pouquíssima força apenas nos antebraços, passei a lutar com a disautonomia e precisei ser internada mais duas vezes. Muitos cuidados e persistência caracterizavam a minha rotina de conquistas, que incluía reaprender a falar, a mastigar, engolir, abrir e mover os olhos, a movimentar qualquer parte do corpo”, conta.
Um ano depois, Desirée segue em evolução, com perseverança, fé, e o apoio incondicional da família e dos amigos. “Ainda tenho muita disautonomia, uso óculos pra perto e longe, não tenho salivação e lacrimação, e ainda não consigo correr e pular, mas caminho”, comemora.
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ASSUNTOS: Saúde e Bem-estar