Com veto a descarte de embriões e indenização por dano futuro, entenda a reforma do Código Civil
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SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Enviada ao Senado após uma discussão de oito meses e com mudanças em 1.122 artigos e dez leis federais, a proposta de atualização do Código Civil de 2002 inclui temas como a proibição do descarte de embriões, a indenização por danos futuros e a responsabilidade do casal com dependentes, do sobrinho à sogra, após a separação.

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Depois da Constituição, afirmam especialistas, o código é o conjunto de leis mais importante do país, já que regula as relações cotidianas e os negócios. O trabalho foi conduzido entre agosto de 2023 e abril de 2024 por uma comissão de juristas sob a presidência do ministro do STJ (Superior Tribunal de Justiça) Luis Felipe Salomão. Pela extensão do material, o trabalho foi dividido em nove subcomissões, que votaram seus relatórios em audiências no Senado.
Algumas questões organizam temas decididos na Justiça, como a equiparação da união estável ao casamento e a admissão do casamento de pessoas do mesmo sexo. Pontos, inclusive, que já vinham sendo incluídos no Código Civil, que já teve ao menos 40 alterações desde a promulgação em 2002, segundo especialistas.
Veja abaixo alguns dos principais pontos da reforma, que ainda aguarda apreciação no Congresso.
PROIBIDO DESCARTAR EMBRIÕES
Os embriões, amplamente usados em reprodução assistida, não poderão mais ser descartados. Deverão ser destinados a pesquisas ou a outras pessoas que busquem tratamento, de acordo com o texto.
"A grande maioria dos casais que opta pela reprodução assistida opta, no final do tratamento, pelo descarte. Teremos um limbo aí", diz a advogada Silva Marzagão, especializada em direito de família e de sucessão.
GAMETAS E A DIGNIDADE HUMANA
Segundo a sugestão do texto, a potencialidade da vida humana pré-uterina e uterina é considerada expressões da dignidade humana. O texto pode levar a interpretações de que gametas e embriões estão equiparados, no direito à dignidade, a pessoas, segundo a advogada Silvia Marzagão. Essas leituras podem ser usadas em movimentos, por exemplo, de restrição ao aborto legal.
"Isso eventualmente poderá embasar outros projetos na área criminal para tentar barrar direitos que já existem há décadas no nosso ordenamento."
SEPARAÇÃO E RESPONSABILIDADE COM DEPENDENTES
Ainda no direito de família, a proposta do artigo 1.576 inclui o termo "dependentes" no rol de responsabilidades de pessoas casadas, junto com os filhos. Se a relação termina, os cônjuges deverão partilhar de forma igualitária também o dever para com os dependentes. É o caso de uma sogra ou sobrinho, por exemplo, que de alguma forma seja considerado dependente para moradia, assistência média ou alimentação, por exemplo. Mas o termo, segundo Silvia, é aberto, e deixará uma ampla possibilidade de interpretação aos juízes.
REGISTRO DO PAI
A proposta do Código Civil desloca o ônus da prova. Atualmente, se a mãe diz que um homem é o pai de uma criança e ele recusa, é essa genitora que precisa buscar a Justiça para provar a paternidade. A mudança propõe que o pai, ao ser notificado pessoalmente, tem cinco dias para reconhecer ou fazer o exame de DNA. Passado esse prazo, é considerado pai e precisará recorrer na Justiça para deixar de sê-lo.
CÔNJUGE E HERDEIRO NECESSÁRIO
Cônjuges deixam de ser, segundo a proposta para o Código Civil, herdeiros necessários de alguém. A definição atual é a mesma de filhos, que têm direito a uma parte igual da herança mesmo sem testamento.
ANTECIPAÇÃO DE HERANÇA
O tema diz respeito à antecipação de herança de uma pessoa ainda viva e faz parte da seção do direito de sucessão. Em um exemplo de caso concreto, dois filhos decidem, com a mãe ainda viva, como vão dividir um bem, como um apartamento. Um propõe comprar a parte do outro. Essa combinação, chamada de pacta corvina, é ilegal, já que a herança de alguém vivo não pode ser objeto de contrato. Na proposta, isso continua proibido, mas o texto abre brecha ao dizer que o combinado entre herdeiros necessários descendentes, como filhos, não é um contrato.
RESPONSABILIDADE CIVIL
É uma das seções com mais mudanças, com a troca de todos os artigos. Um dos exemplos mais citados no debate trata de um adolescente que causa um acidente com o carro dos pais. Hoje, eles são responsabilizados. Na proposta, poderão alegar que não sabiam e não poderão ser responsabilizados por eventuais danos.
No caso de advogados, o projeto diz que eles só poderão ser responsabilizados na esfera cível quando houver crime ou fraude. Isso cria uma separação especial e indevida ao diferenciá-los de outros profissionais liberais, que continuam respondendo por negligência, como médicos e engenheiros, diz Osny da Silva Filho, professor de direito da FGV (Fundação Getulio Vargas).
INDENIZAÇÃO POR ATO LÍCITO
Com a proposta, será possível buscar indenização mesmo em caso de um dano causado por um ato lícito. Segundo Osny, ninguém pediria indenização, por exemplo, a um mercado que abre perto de outro e prejudica o mais antigo por tomar a clientela, mas a forma atual do projeto, apresentado sem mudanças pelo senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), permite a interpretação aberta. "Vamos ter que apostar no bom senso de juízes, porque não há parâmetros."
INDENIZAÇÃO POR DANO FUTURO
Atualmente, se uma pessoa tem o carro danificado em um acidente, pode pedir indenização pelos danos no veículo e uma indenização por dano moral. O texto passa a considerar, segundo Paulo Doron de Araujo, advogado e professor de direito na FGV, danos futuros, prováveis e até estatísticos, ampliando valores e possibilidades de indenização. "E o STJ, nos últimos 20 anos, vem trabalhando para manter as indenizações em patamares razoáveis, em geral, reduzindo."
CRITÉRIOS PARA REVISÃO E ANULAÇÃO DE CONTRATOS
A advogada Judith Martins Costa, presidente do Instituto de Estudos Culturalistas e doutora pela USP, afirma que os contratos agora poderão ser anulados se houver violação de critérios como confiança e função social.
"Atribui-se um efeito drástico", diz a especialista. "O código atual tem regra que diz que [as partes] devem ser comportar de forma proba, correta", mas isso não fica como critério para invalidar o contrato, de acordo com Judith.
Segundo Paulo Doron, a revisão de contratos hoje é permitida por um dispositivo no Código Civil. Com a reforma, serão ao menos seis, que valerão para todo tipo de contrato.
DIREITO DE PROPRIEDADE
Um exemplo é a contestação permitida no novo texto a garantias fiduciárias que atentem contra a ordem pública. Num exemplo, alguém que deu a casa em que vive como garantia para um empréstimo poderia alegar na Justiça que os juros são extorsivos e extrapolam a capacidade de pagamento, atentando contra a ordem pública na garantia da dignidade da pessoa, segundo Paulo Doron. O tema vale não apenas para imóveis com fins de residência, mas também unidades produtivas, como fazendas.
DIREITO DIGITAL
O livro pretende reunir um conjunto de regras para regular o ambiente digial, criando também a definição de contratos digitais Um caso é, por exemplo, a definição como patrimônio digital de perfis e senhas de redes sociais, criptomoedas e contas em plataformas de jogos, fotos, textos e vídeos e até milhas aéreas. Isso tudo pode ser, inclusive, herdado em testamento. Atualizações similares foram definidas, no entanto, nas seções que tratam do direito de herança.
As plataformas também responderão civilmente, segundo o texto, por vazamentos de dados e deverão adotar mecanismos para verificar a idade mínima dos usuários, de acordo com resumo na página do Senado.
O livro, no entanto, adota expressões que não são conceitos no mundo jurídico e trata de termos como privacidade mental e neurodireitos, que ainda não tiveram um estudo detalhado até mesmo para sua definição no ordenamento brasileiro, segundo Doron.

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