Exposição à fumaça das queimadas florestais na Austrália gera medo
CANBERR, AUSTRÁLIA (FOLHAPRESS) - A fumaça causada pelas queimadas florestais na Austrália virou parte da rotina da população que vive na costa Leste do país. Desde o fim do ano passado, a presença de uma densa camada de poluição no ar preocupa moradores de cidades próximas aos incêndios, responsáveis por uma tragédia ambiental sem precedentes na história de uma nação acostumada com fogos sazonais.
A capital Canberra, que fica a aproximadamente 300 km de Sydney, é um dos casos mais emblemáticos quando o assunto é neblina de fumaça. Cercada por queimadas, a cidade de 420 mil habitantes virou refém do vento, que, ao mudar de direção, traz consigo uma espécie de cortina para tapar as nuvens no céu e transformar a cor do Sol em vermelho na percepção de quem o enxerga.
Apesar de não haver registro de incêndios na região que compreende o Território da Capital Australiana (ACT, sigla em inglês), o medo de que uma pequena faísca possa provocar um fogo descontrolado é iminente. O governo estadual divulga de forma constante no rádio uma mensagem para os moradores, alertando para o perigo:
"Estamos enfrentando condições extremas em nossa região. Com a fumaça de queimadas indo e vindo e incêndios cercando ACT, é fundamental que você siga as instruções de serviços de emergência e se prepare para agir em um possível fogo", avisa o locutor. "Reservando 20 minutos do seu tempo para falar sobre isso com a sua família, você estará salvando não só a vida deles, mas também a sua e a sua propriedade", diz outra mensagem.
Por pelo menos três vezes, Canberra figurou no topo do ranking produzido pela empresa IQAir Air Visual, que mede a qualidade do ar ao redor do mundo, ficando à frente de cidades com índices exorbitantes de poluição atmosférica, como Mumbai, na Índia, e Pequim na China.
No primeiro dia de 2020, por exemplo, a capital australiana atingiu a marca de 7500 no índice. Qualquer número acima de 200 já é considerado perigoso para a saúde humana, de acordo com o departamento de saúde de ACT.
Diante deste cenário, milhares de pessoas recorreram ao comércio, particularmente às farmácias, para comprar máscaras de proteção facial e purificadores de ar.
A procura foi tanta que praticamente todos os estabelecimentos esgotaram seus estoques, e foi necessária uma intervenção imediata do governo estadual, que encomendou e distribuiu gratuitamente mais de 100 mil máscaras para a população de Canberra em janeiro, priorizando moradores com saúde vulnerável (crianças, idosos e pessoas com deficiência). O restante foi destinado às lojas.
O governo de ACT também passou a recomendar que a população ficasse, se possível, em ambientes internos, com portas e janelas fechadas, e que evitasse exercícios físicos na rua. Eventos esportivos foram cancelados, parte do comércio fechou as portas e muitos empregadores recomendaram que seus funcionários não fossem trabalhar.
Enquadrada no grupo de pessoas mais sensíveis aos efeitos da fumaça, a psicóloga brasileira Luna Aragon, de 32 anos, está grávida de 18 semanas do segundo filho. O primeiro, Kaio, tem um ano e quatro meses de idade. Ela e o marido vivem em Canberra desde 2017, mas agora estão cogitando arrumar as malas para fugir da capital australiana, tamanho incômodo que essa convivência forçada causa para a família dela.
"Por estar grávida e ter uma criança pequena, minha preocupação é muito maior. Pensei em voltar para o Brasil por um tempo ou sair de Canberra, mas meu marido ponderou que qualquer lugar aqui nesta região onde vivemos também pode ter fumaça. O baby que está dentro de mim não tem nem os pulmões formados ainda. E quanto mais informações busco, mais preocupada fico", conta ela.
Luna explica que a batalha contra a fumaça é diária, dentro e fora de casa. Ela não permitiu que Kaio voltasse para a escola em janeiro, e a creche onde ele estuda também não estava preparada para enfrentar uma situação grave como essa. A estrutura é vazada, descreve Luna, permitindo uma grande circulação de ar e, consequentemente, uma maior exposição à fumaça.
"Checo todo dia o aplicativo de qualidade do ar. Se está ruim, nem saímos de casa. Faz muito tempo que não vamos brincar nos parques da cidade. Compramos um purificador de ar e máscaras para poder ter um ar limpo dentro da nossa própria casa. Mas, às vezes, nem isso ajuda."
Escolas de Canberra foram orientadas a restringir a permanência de crianças em ambientes externos por tempo indeterminado.
"É bem desafiador manter as crianças dentro da escola. Estamos inventando coisas, brincadeiras novas, tudo para fazer os alunos se mexerem e gastarem energia. Todas elas ficam muito agitadas sem o ar livre, sem tantas atividades físicas a que estão acostumadas", diz a educadora infantil Thayane Chaves, 30 anos, que trabalha em uma de escolas de Canberra.
Canberra é uma capital promissora, e o investimento na construção civil é alto. Bairros novos surgem a cada semestre, mas a fumaça que os trabalhadores respiram não estava nos planos. Assustou até mesmo os "tradies", como são chamados os profissionais qualificados no ramo de serviços. O carpinteiro Jeremy Bradbury, de 22 anos, nascido em Canberra, diz que nunca havia passado por uma situação tão crítica, a ponto de não poder ir trabalhar por conta da poluição nas ruas.
"Inicialmente chegamos a zombar da situação por sermos caras durões na obra. Mas, à medida que as queimadas pioraram, passou de uma brincadeira para um perigo real para nossa saúde. Alguns dias fomos orientados a ficar em casa para evitar exposição", diz. "Trabalhar em meio à fumaça me faz sentir um peso no peito e irritação nos olhos. Também afetou muito meu humor. Me sinto atingido fisicamente e emocionalmente por saber a destruição que está causando."
Até agora, as queimadas já mataram ao menos 28 pessoas e devastaram mais de 10 milhões de hectares, destruindo cerca de 3.000 propriedades. Os estados mais afetados são Nova Gales do Sul e Vitória.
Especialistas estimam que problemas respiratórios e doenças mais graves surgirão devido à exposição prolongada à fumaça. No entanto, ainda é cedo para compreender inteiramente as consequências disso para o corpo humano.
À curto prazo, a inalação pode piorar condições asmáticas e doenças no pulmão e provocar coceira na pele e irritação nos olhos, como descreveu Jeremy. O hospital de Canberra registrou cerca de 120 atendimentos por problemas respiratórios, atribuídos à fumaça, desde o fim de dezembro no setor de emergência.
"Nos piores dias de fumaça, podemos dizer que é como fumar 30 cigarros por dia somente pela inalação, mas precisaríamos de uma exposição diária a este nível de poluição, por muitos meses, para podermos comparar aos efeitos causados pelo cigarro. Sabemos que teremos consequências sérias a longo prazo para a saúde da população, só que ainda não temos certeza quais serão", diz Brian Oliver, professor especialista em biologia respiratória do Departamento de Tecnologia na Universidade de Sydney e membro da Associação Torácica da Austrália e Nova Zelândia.
O buraco negro em torno dos impactos da fumaça para a saúde humana levou o governo federal a anunciar um fundo de 5 milhões de dólares australianos a serem investidos em pesquisa oficiais relacionadas com o tema. Oliver estima que os resultados de estudos sobre o tema devam demorar de 10 a 20 anos.
Especialista em saúde ambiental e referência na Universidade Nacional da Austrália, Sotiris Vardoulakis explica que as cinzas contêm contém partículas minúsculas que podem causar sérios problemas ao corpo humano.
Ele diz que máscaras de proteção não são a melhor solução, porque há poucas evidências de que os filtros presentes nos itens realmente funcionam, mas elas podem ajudar a reduzir os danos.
"A melhor solução, na minha opinião, é permanecer em ambientes internos sempre que possível e ter purificadores de ar", diz.
Na semana passada, a chuva chegou à Austrália e deu uma trégua aos incêndios florestais na costa Leste. A previsão dos serviços de emergência e saúde do país é de que as condições climáticas melhorem, colaborando no controle das queimadas e na redução da fumaça nas cidades australianas.
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