Medo de contágio cria obsessão por limpeza e busca de sintomas do coronavírus
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Se, antes do coronavírus, higienizar toda embalagem que vem da rua e só sair quando fosse essencial poderiam parecer exagero, hoje são recomendações essenciais para evitar o contágio. Mas a tensão constante de ser infectado pode fazer com que esses hábitos sejam repetidos mais do que o necessário.
"Em uma época de pandemia, que obriga todo mundo a ficar em reclusão e a tomar cuidado, todos nós vamos estar muito mais paranoicos e obsessivos do que antes", diz Marcos Oreste Colpo, psicólogo e professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP). "Toda essa ameaça de contaminação e da doença, que pode ser leve ou fatal, nos deixa com uma ansiedade e uma tensão enormes."
É quando esses sentimentos se intensificam, explica Colpo, que as pessoas desenvolvem hábitos como forma de aliviar essas tensões -é o caso, por exemplo, de limpar repetidamente uma superfície ou checar compulsivamente a existência de sintoma de coronavírus.
Letícia Silvério, 18, estudante de medicina em Pelotas (RS), é uma das que intensificou a limpeza da casa no isolamento.
"Antes da quarentena eu conseguia olhar para coisas que não estavam perfeitamente limpas e organizadas e pensar 'ok, mais tarde eu arrumo isso'. Agora, eu fico agoniada se não faço na hora", conta.
Ela conta que, em uma das vezes que teve que ir ao mercado, lavou as mãos assim que entrou em casa. Quando terminou a lavagem percebeu, no entanto, que havia encostado na mesma torneira que abriu com as mãos sujas e resolveu higienizar também a torneira. Mas, tocando de novo a torneira, sentiu necessidade de lavar ainda mais as mãos.
"Eu penso em limpar mais porque é uma atividade que faz o tempo passar e, quando terminada, me traz uma sensação boa. Então eu acabo buscando essa sensação mais vezes e, consequentemente, limpando mais vezes."
Nem toda repetição é considerada algum tipo de doença -e há critérios que ajudam a diferenciar hábitos exagerados, mas ainda considerados saudáveis, de possíveis compulsões.
Daniel Costa, psiquiatra do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, explica que há dois sintomas centrais para diagnosticar um transtorno obsessivo-compulsivo, conhecido como TOC.
O primeiro são as obsessões, que são os pensamentos, ideias e imagens que tem um caráter repetitivo, intrusivo e de conteúdo desagradável. É o caso, por exemplo, do medo de contaminação, que pode se manifestar em crises de ansiedade e falta de ar.
O segundo sintoma dos casos são as chamadas compulsões, comportamentos repetitivos que têm como função aliviar o desconforto que a obsessão traz.
"É muito comum o ritual de limpeza e lavagem para quem tem medo de contaminação, pessoas que usam luva para tudo, exageram nas recomendações de isolamento", explica o psiquiatra.
Mas só a presença de sintomas não é suficiente para se ter um diagnóstico. Como parâmetro, afirma Costa, as compulsões têm que consumir pelo menos uma hora do dia do paciente e estar associadas a algum tipo de prejuízo cotidiano.
Ele adverte, no entanto, que é preciso rever esses critérios no período de pandemia. "Temos que levar em conta as recomendações sanitárias. É muito provável que muita gente esteja gastando mais tempo com esses comportamentos de limpeza."
Adryan Barbosa, 19, que tem saído para trabalhar no setor portuário em Vitória (ES), conta que uma das suas maiores preocupações são possíveis sintomas de coronavírus.
"Para mim, é comum sintoma de gripe e de alergia porque eu tenho rinite alérgica. Só que como os sintomas da Covid são muito parecidos com os da gripe, acaba ficando aquela dúvida na minha cabeça."
Desde que a pandemia começou, ele, que já tinha problemas de ansiedade, sentiu uma piora no quadro.
"Acabo medindo minha temperatura muitas vezes por dia. Começo a sentir frio e aí quando vou medir a temperatura, está lá, 36ºC. É uma coisa psicológica."
Ayla Melo, 20, que faz cursinho em Maceió (AL), também criou o hábito de checar se está com febre.
"O único que está trabalhando em casa é meu pai aqui e fiquei paranoica com isso. Chequei minha temperatura mais que o normal, estava realmente achando que tinha febre, mas não estava. Comprei até outro termômetro por achar que o meu estava quebrado", conta.
Ela, que tem quadros de sinusite e rinite, acha difícil diferenciar os sintomas e também começou a se isolar no quarto quando algum deles aparecia.
"Para lidar com a ansiedade, estou procurando terapia online, meditação em casa. Uso alguns aplicativos para fazer ioga, exercício físico", diz Melo.
"Uma noção importante de saúde e doença é que a doença é restritiva", explica o psicólogo Marcos Dalpo.
Mesmo em isolamento, por si só uma situação limitante, é possível criar parâmetros para perceber se esses afazeres estão ocupando mais tempo que o normal.
"Tem muita gente trabalhando em casa, com projetos, e quando percebe que está deixando de fazer essas coisas em troca dessas ritualizações, isso pode ser um sinal importante", afirma.
Além disso, o psiquiatra Daniel Costa também explica que há sinais mais concretos. É o caso de pessoas que, de tanto lavar as mãos, começar a ter uma dermatite de contato, exemplifica.
Ele afirma que houve um aumento na demanda de trabalho no consultório em que atua. "Pacientes que estavam estáveis pioraram da ansiedade, depressão, voltaram a ter crise de pânico, houve gente que começou a beber mais. Vi muitos pacientes com TOC que pioraram muito no contexto de pandemia".
A terapia comportamental e tratamento medicamentoso são os duas possibilidades para lidar com o transtorno. A primeira envolve orientar o paciente a enfrentar os medos que sente e evitar fazer os rituais.
"Estamos vivendo um momento histórico marcado por muito estresse, mudança muito radical do nosso estilo de vida, famílias lidando com morte ou adoecimentos. Tudo isso é fator de risco para toda e qualquer doença mental", afirma Costa. "Mas podemos especular que, em um futuro próximo, quando a situação estiver normalizada, mesmo não sabendo se vamos voltar ao normal, podemos esperar um aumento de casos [como esses]."
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