Melhor aluno da 1ª turma do Largo São Francisco era negro
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SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - O melhor aluno da primeira turma da famosa faculdade do Largo São Francisco era negro. Órfão, teve uma infância extremamente pobre no Brasil escravocrata do século 18. Passou fome, teve de aceitar esmola e foi vítima de preconceito.

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José Antônio dos Reis havia sido bibliotecário da primeira biblioteca pública de São Paulo, inaugurada em 24 de abril de 1825, no convento dos franciscanos. Foi essa biblioteca que, dois anos depois, deu origem à faculdade, criada por decreto de dom Pedro 1º em 11 de agosto de 1827 e integrada à USP em 1934.
As celebrações dos 200 anos da biblioteca envolvem um projeto de restauro de suas instalações, tombadas pelo Patrimônio Histórico. Originalmente localizada nos fundos do convento dos franciscanos, o acervo passou para o prédio construído ao seu lado, na década de 1930, para a Faculdade de Direito.
Coordenador do projeto de restauro, o professor titular da São Francisco Maurício Zanoide de Moraes ressalta a importância de se resgatar a história de Reis e de refletir sobre a sua conexão com o atual sistema de cotas nas universidades.
Reis nasceu em São Paulo, em 1798. Alguns pesquisadores acreditam que era preto, outros dizem que provavelmente era pardo, e não há clareza sobre detalhes das origens e do motivo de não ser escravizado. Órfão muito novo, teve que batalhar para comer, para ter o que vestir e para conseguir se tornar um estudante, condição historicamente restrita à elite, que excluía pobres e negros.
Conseguiu se inscrever aos 15 anos em um curso de filosofia no convento dos franciscanos. Logo se destacou e chamou a atenção do bispo de São Paulo, Mateus de Abreu Pereira, que passou a apoiá-lo. Aos 20, começou a dar aulas no convento e encarou o preconceito dos alunos, que não achavam que alguém com roupas tão simples poderia ser professor, conforme relata artigo das pesquisadoras Maria Lucia Beffa, atual diretora da biblioteca da Faculdade de Direito da USP, e Luciana Maria Napoleone, que exerceu o cargo de 1997 a 2010.
Reis ordenou-se sacerdote e foi convidado a cuidar da primeira biblioteca pública de São Paulo, criada a partir do acervo do convento, de livros doados por religiosos no Brasil colônia; a primeira doação, do frei Manuel da Ressurreição, em 1776, e a segunda, de Luiz Rodrigues Villares, em 1810.
Para inaugurar a biblioteca pública, a província de São Paulo adquiriu os livros de um terceiro religioso, justamente o protetor de Reis, Mateus, morto em 1824. Com isso, já eram 5.000 exemplares, quantia significativa para uma cidade de 10 mil habitantes hoje são mais de 300 mil livros.
Ao fazer o primeiro inventário da biblioteca, Reis foi acusado por um extravio de livros ocorrido antes de sua chegada ao cargo, e escreveu: "Nunca pensei que tão facilmente se expusesse à censura pública a conduta de um súdito que ama cumprir seus deveres. Por que tão desairosamente se ofende a verdade?"
Em 1828, tornou-se um dos 33 integrantes da turma inaugural da faculdade do Largo São Francisco, agraciado com medalha de ouro de melhor aluno. Entre outras atuações, foi fiscal da Câmara Municipal de São Paulo, membro do Conselho Geral da Província e bispo de Cuiabá. Abolicionista, participou das discussões da Lei do Ventre Livre, assinada em 1871. Morreu aos 78 anos, em 1876, 12 anos, portanto, antes da abolição da escravidão no Brasil.
Hoje, quase 150 anos após a morte de Reis, o diretor da faculdade, Celso Fernandes Campilongo, lembra como ele e outros negros que fazem parte da história do Largo São Francisco enfrentaram preconceito dentre os próprios alunos e professores, muitos deles membros da aristocracia escravocrata.
Cita Luiz Gama, que, em 1850, não foi aceito como aluno na faculdade por ser negro e decidiu frequentar a biblioteca e assistir às aulas como ouvinte, tornando-se um dos maiores juristas do Brasil e grande nome do movimento abolicionista hoje, um projeto elaborado pelos estudantes prevê a instalação de uma estátua de corpo inteiro de Gama não Largo São Francisco.
Em 2020, também após um movimento do Centro Acadêmico XI de Agosto, foi dado a um auditório da São Francisco o nome de Rubino de Oliveira, que lá se formou em 1864 e de onde se tornou o primeiro professor negro, em 1879.
O diretor da faculdade defende as mudanças que as cotas têm proporcionado à faculdade e ao ambiente acadêmico no país. E aponta que ainda há desafios. Ele pede maior investimento em programas de apoio e acolhimento para que os cotistas sigam em sua formação.

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