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‘A bênção, Mutinho, saravá!’

Por Agência O Globo

17/08/2017 19h08 — em
Arte e Cultura



RIO — Vinicius de Moraes o anunciava nos shows como o "sobrinho amado do Lupicínio Rodrigues". Já Tom Jobim o apresentava apenas como o "baterista-compositor". Lupicínio Moraes Rodrigues Sobrinho, mais conhecido como Mutinho, acompanhou em 60 anos de carreira artistas como Elis Regina, Toquinho e Pery Ribeiro, além dos próprios Tom e Vinicius. Além de se apresentar pelo Brasil e pelo mundo, o músico gaúcho compôs faixas com parceiros muito especiais. E guardou alguns "segredos".

— Além de tocar bateria, sempre criei melodias e fiz canções. Isso me permitiu compor com ídolos que se tornaram amigos. No meu álbum tenho parcerias inéditas com Vinicius e Toquinho, que guardei durante 40 anos: esse é o "Meu segredo" — conta o músico de 76 anos, fazendo referência ao nome do seu primeiro disco solo (Kuarup), que tem lançamento físico e digital previsto para 1º de setembro.

Nascido em Porto Alegre, Mutinho descobriu cedo o amor pelas canções. Na casa do avô Francisco Rodrigues, pai de seu "tio Lupe", vivia cercado de músicos da família e amigos do tio famoso, de quem foi pupilo. Aos dez anos, improvisava uma bateria com cadeiras e panelas para acompanhar os mambos do músico cubano Perez Prado. Mas o primeiro contato profissional viria aos 16 anos, quando seu célebre mentor o convidou para conhecer seu bar na capital gaúcha.

— Eu nunca tinha visto uma bateria de verdade. Fiquei só olhando o cara da banda tocando aqueles sambas-canção. Ele então me chamou pra pegar as baquetas e disse "toca a mesma música". Eu me sentei e toquei igualzinho a ele, que emendou no final "pode vir tocar no sábado" — recorda o músico.

Ele se lembra com carinho do tio famoso, com quem guardou uma relação próxima, apesar de ter seguido sua própria trilha musical. A participação inicial de Lupe foi fundamental.

— Ele deu minha primeira bateria, meu primeiro emprego e minha primeira mulher — diverte-se, lembrando das primeiras aventuras musicais e amorosas vividas no bar de Lupicínio.

Apesar de não ser tão conhecido quanto seus parceiros, Mutinho é autor de sucessos como "Escravo da alegria", com Toquinho, e da canção infantil "O caderno", também com o violonista, conhecida na gravação de Chico Buarque para o musical "Casa de brinquedos". Tom Jobim era um dos admiradores das composições do amigo gaúcho. Elogiava e sempre pedia ao baterista-compositor que tocasse "Jogo de amarelinha", cuja harmonia incomum surpreendia o maestro da bossa nova.

Nos início dos anos 1960, Mutinho já tinha se estabelecido na cena musical que surgia em Porto Alegre. Elis Regina, que viu cantar ainda menina, lhe foi apresentada numa rádio da cidade. A Pimentinha que ainda não havia mergulhado no universo da bossa nova de João Gilberto, Tom e Vinicius, gravou o compositor em seu segundo disco, em 1962.

— "Tristeza de carnaval", que fiz em parceria com Bidu, e "Formiguinha triste", de João Palmeira, foram as primeiras bossas que a Elis gravou — conta ele, que tocou com a cantora em um conjunto de baile da época chamado Flamboyant.

A carreira - e a fama de exímio baterista - foi se consolidando, até que em 1974 Mutinho passou a acompanhar Toquinho e Vinicius. Nessa época, começaram a surgir as parcerias que renderam sucessos, como "Até rolar pelo chão" e "Meu panamá", regravados agora na voz do gaúcho em sua estreia como cantor. Um dos destaques do disco é a canção com letra do Poetinha que nunca havia sido gravada.

— "Acalanto para Lupicínio Rodrigues" é uma homenagem ao meu tio que veio de um sonho que tive após o seu falecimento, em que ele me falava que estava bem. Mostrei a ideia pro Vina e, quando terminei de tocar, ele disse "essa é minha!" — lembra o baterista.

As músicas de Mutinho eram disputadas pela dupla. O samba que fecha seu disco, "Turbilhão", inicialmente pensado para Vinicius fazer a letra, acabou sendo roubado por Toquinho.

— Eu compus a melodia num hotel. Pela manhã, fui ao quarto do Vina mostrar a ele. Bati, mas ele ainda estava dormindo. Quando estava voltando pelo corredor, o Toquinho, esperto, me viu com o violão e perguntou "violão numa hora dessas?". Eu disse que tinha ido mostrar uma ideia, no que ele emendou "ah, então entra aqui no meu quarto". Mostrei, e ele ficou louco — conta sobre a música, uma das "traições", como Vinicius chamava parcerias entre seus amigos sem a sua participação.

A ideia do disco solo de Mutinho surgiu quando o músico, produtor e pesquisador Bruno de La Rosa descobriu sua história e suas dezenas composições, grande parte ainda desconhecida. Ao projeto se juntaram os produtores Marcos Alma e Wagner Ambrosini. O disco conta com as participações de Toquinho, Miúcha e Georgiana de Moraes, filha do poeta.

— A estatura do Mutinho não permite que ele fique apenas figurando como um parceiro desconhecido, quase um de canções. E esse disco personifica a realização dele como autor — afirma De La Rosa.

Com um vigor físico invejável ("tenho saudade dos meus 70 anos, quando ainda fazia 200 abdominais") , o músico toca bateria de segunda à sábado no bar Baretto, em São Paulo. Ele segue compondo e ainda guarda alguns "segredos" que não foram gravados. Para ele, estrear neste momento é uma forma de registrar a obra na sua própria voz, com seu estilo musical particular.

O baterista-compositor crê que este lançamento é uma forma de não deixar morrer um estilo clássico de música brasileira, que bebe de fontes como o samba e a bossa nova. Como prenunciam os versos que Toquinho fez para "O caderno": "Só peço a você um favor, se puder/Não me esqueça num canto qualquer", é uma forma de manter vivo seu legado musical.

— Eu quero mostrar pros meus bisnetos o que o bisavô deles fez.


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