Festival Psica une o popular de Pabllo Vittar a cantores cult com Pará como bússola
BELÉM, PA (FOLHAPRESS) - Em seu show no festival Psica, que aconteceu entre sexta (13) e domingo (15) em Belém, João Gomes agradeceu ao evento porque só nele "a gente faz esse tipo de mistura". Não foi a primeira vez que o ícone da pisadinha, uma das principais atrações do evento, dividiu o palco com o rapper Don L, mas foi a mais marcante.
Don L integrou sua banda à de João Gomes, e o pernambucano dividiu versos, e cantou refrões de músicas do ídolo, muito além dos encontros protocolares que se tornaram comuns em festivais no Brasil. As músicas e até alguns versos do rapper cearense tiveram seus sentidos expandidos com arranjos de piseiro ou de reggae e a voz profunda do cantor.
Se não foi o maior momento desta edição do Psica, a junção de uma das sensações da música brasileira atual com um rapper de carreira sólida e caneta influente, mas alcance limitado, revela as intenções do festival. Um dos grandes eventos culturais da região Norte, o Psica não se propõe a ser um festival mainstream, mas coloca lado a lado o que é muito popular e o que é venerado em nichos cult, num horizonte musical que tem o território amazônico como base.
Criado em 2012, o Psica nos últimos anos é destaque nacionalmente. O formato atual tem um dia gratuito na Cidade Velha, em meio a prédios históricos de Belém, que neste ano teve os bois de Parintins, do Amazonas, e o boi Pavulagem, do Pará, como atrações principais. No fim de semana, com venda de ingressos, os shows tomam o estádio Mangueirão.
Por lá, passaram tanto shows mais cabeçudos, caso dos números instrumentais da banda Black Rio e dos jamaicanos Skatalites, quanto nomes populares em todo o Brasil, como Pabllo Vittar e Liniker. Isso sem contar nas diversas vertentes do brega paraense, de Viviane Batidão às aparelhagens que fecharam todos os dias do evento com suas estruturas de megazord.
No caso da rainha do tecnomelody, era difícil caminhar pela plateia na noite do sábado para conseguir um lugar para vê-la de perto. Recebida com pompa de estrela pop, Viviane Batidão fez um show bombástico, inserindo a megalomania que o paraense adora num repertório de quase duas décadas. Ela usou um canhão de fumaça, fez de moto dançarinos com capacetes e foi envolta por penugens em números performáticos entremeados por pirotecnia.
Musicalmente, Viviane emocionou a plateia com hits românticos, entre as tão conhecidas versões em português -e em brega de teclados- de músicas gringas e sucessos fundamentais do gênero que ela defende, como a minimalista "Galera da Golada". Houve ainda uma seção de rock doido, o tecnobrega atual que é febre nas aparelhagens, que acendeu de vez o Mangueirão.
Para quem é de fora, o Psica constrói narrativas da música paraense de maneira didática. Antes de Viviane, o espectador poderia assistir à DJ Meury, alquimista do rock doido embebido em funk, no palco eletrônico, e vislumbrar uma encarnação mais elementar do tecnobrega com Jurandy, um dos pais do gênero, em um dos palcos menores.
Foi um passeio pela linha evolutiva do brega que se fechou só na madrugada de segunda (16), com a aparelhagem Carabao resgatando sucessos ainda mais antigos do brega paraense. É o que em Belém se chama de "saudade", as relíquias de nomes como Teddy Max e Mauro Cotta.
No sábado, comandada por William Magalhães, a Black Rio esquentou o público com clássicos do álbum "Maria Fumaça", de 1976, antes de chamar Tony Tornado. Aos 94 anos, o decano do soul surgiu de blazer prateado para dizer que só estava ali porque o Pará é o terceiro estado mais negro do Brasil.
Com o filho Lincoln, ele emocionou o Mangueirão cantando "BR-3" e esbanjou vitalidade em show que refrescou a memória do movimento black que eclodiu no Rio, com canções de Cassiano, Gerson King Combo e Tim Maia.
Os palcos menores sofreram com a concorrência, mas ficaram lotados em várias situações. Uma delas foi no show da rapper carioca Ebony, que divertiu com seus traps debochados e de flow arrojado. Também do Rio, o DJ Ramon Sucesso bagunçou as mentes do público com seu característico "beat bolha" e uma sequência de funks que fez os paraenses se sentirem num baile carioca.
Em termos de estrutura, ainda há coisas a melhorar no Psica, que viu pequenos atrasos se repetirem ao longo dos dias. O som, que preza pelo grave e soou bem equalizado na maioria das apresentações, também atrapalhou algumas outras, notadamente a de Pabllo Vittar.
Nada disso ofusca a experiência de ver num mesmo festival uma lenda do reggae como Val Douglas, baixista do Skatalites que já tocou com todo mundo de Bob Marley a The Congos, esmerilhando as quatro cordas com precisão arrebatadora. E na sequência assistir a uma apresentação exclusiva de Fafá de Belém cantando o álbum "Água", de 1978, em sua terra natal.
Nem sempre os shows estavam lotados, mas pelo menos não parecia que alguém estivesse ali apenas quantidade de seguidores nas redes sociais -sensação recorrente em vários festivais país afora. Fosse maior ou menor o apelo de um artista, havia sempre uma estética sendo defendida.
O público local, reverenciado repetidamente por quem veio de fora, esteve eufórico nos shows de Liniker e Pabllo Vittar. A primeira se emocionou cantando o álbum "Caju", cujas músicas ecoaram pelo Mangueirão na voz da plateia. Já Vittar, que cantou com Gaby Amarantos em seu show e depois apareceu nos de Liniker e João Gomes, mostrou o projeto "Batidão Tropical", em que resgata e reinventa canções de tecnobrega e forró.
A plateia paraense, em especial nos shows de artistas locais, consome a música ao vivo como de maneira coletiva, em oposição à experiência individual mais fria, em que cada um curte o som no seu canto. Os gritos de "endoida, caralho" e "sal" saem como coros que parecem ensaiados, assim como os momentos em que a plateia põe os braços para cima, entre outros comandos que só vivendo nesta terra para saber.
O Psica não teria o mesmo apelo se não existisse a música paraense, diversa e criativa, e um público que canta versos de Don L e pela no rock doido da aparelhagem Super Pop. Mas o festival se destaca não só ao escalar artistas locais, mas inserindo a cultura de Belém no modo de arquitetar o evento.
Isso significa que o Psica espelha o modo de ouvir música do Pará, que deglute tudo sob o filtro próprio do brega e seus afluentes. Seja um DJ tocando no Mercado Ver-o-Peso, uma aparelhagem ou o repertório de Viviane Batidão, nada fica de fora -nacional ou internacional, velho ou novo, famoso ou desconhecido.
Tudo fez mais sentido ainda quando João Gomes recheou seu repertório indo de Don L a Kid Abelha, passando por um sucesso de Tim Maia, um lado B de Fagner e desaguando numa performance de "Chega de Saudade", hino da bossa nova imortalizado por João Gilberto. No Psica, Belém é a bússola que orienta a música brasileira.
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