Gigantes do streaming põem dinheiro em órgãos públicos de olho na regulação no país
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SÃO PAULO, SP (UOL/FOLHAPRESS) - Reformas de salas de cinema, campanhas de promoção do turismo e reformas em equipamentos públicos estão nos planos de algumas plataformas de streaming que atuam no Brasil. Nos últimos meses, Netflix e Amazon têm se aproximado de diferentes áreas do governo federal e participam de mesas de negociação para apoiar projetos variados.

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As conversas com órgãos públicos acontecem em meio à discussão da regulamentação do streaming pelo poder público, que visa taxar as plataformas, bem como impor cotas para produções nacionais em seus catálogos e definir o que torna, em essência, uma obra brasileira ou estrangeira.
Para o assinante, os rumos da regulamentação podem ter impacto tanto sobre o que veem nas plataformas uma oferta maior de produções nacionais, quanto sobre o que pagam o aumento nos impostos poderia ser repassado aos clientes.
O projeto de lei do streaming tenta sair do papel há anos, sem sucesso, mas o assunto voltou a esquentar em Brasília nas últimas semanas, com pelo menos quatro agendas importantes. A ministra da Cultura, Margareth Menezes, e seu secretário-executivo, Márcio Tavares, se reuniram com os parlamentares relatores dos projetos de lei sobre o assunto na Câmara e no Senado.
Já Geraldo Alckmin conversou, como presidente em exercício, com a deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ) e dezenas de representantes do mercado audiovisual independente.
Interlocutores dizem que o clima é de conciliação, mas há discordâncias sobre a Condecine, a Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional, que destina verbas para o Fundo Setorial do Audiovisual, o FSA, e também permite o investimento direto em produções nacionais.
Agentes do audiovisual ouvidos pela reportagem em condição de anonimato dizem acreditar que a aproximação das plataformas de streaming do governo federal visa costurar apoio por uma regulamentação mais branda.
Empresas estrangeiras defendem uma alíquota de 3% ou zerada, produtores independentes querem 12% e o MinC defende uma proposta de 6%. Há dois projetos tramitando no Congresso um com alíquota de 3% e outro de 6%. O ministério defende um texto substitutivo aos dos dois PLs e afirma que segue dialogando com ambas as partes.
Em paralelo, na mesma semana, os chefes da pasta se reuniram com a produtora Paula Lavigne e Gleisi Hoffmann, ministra-chefe das Relações Institucionais, para falar sobre os direitos autorais no ambiente digital e sobre como a inteligência artificial interfere nisso.
Lavigne, representante da indústria fonográfica, discutia a remuneração dos artistas e detentores de direitos e proteção da indústria nacional frente às big techs, sob pressão de vários setores da cultura, não apenas da música. No Congresso, o PL para remunerar obras protegidas por direitos autorais na internet é de Randolfe Rodrigues (PT-AP), com relatoria de Eduardo Gomes (PL-TO) o mesmo que cuida da proposta de alíquota mais branda do Condecine.
Os interesses e argumentos apresentados pelas plataformas representadas por duas associações diferentes, a Strima e a Motion Picture Association, frequentemente divergem, em especial quando a Globoplay, com amplo catálogo nacional, entra nas negociações.
A Netflix é uma das empresas mais afetadas pela regulamentação. A empresa tem o streaming no cerne do seu modelo de negócios, diferentemente de concorrentes como a Max, Amazon Prime Video, Disney+ e Apple TV+, que pertencem a conglomerados ligados a outros mercados.
É justamente ela quem mais tem falado publicamente do assunto há um ano, sua vice-presidente de conteúdo no Brasil, Elisabetta Zenatti, já havia dito à Folha que "é o momento em que precisamos regulamentar". Nos encontros entre representantes das plataformas, a Netflix seria a mais aberta ao diálogo, em divergência com big techs também afetadas pela lei, como YouTube, TikTok e Meta.
Enquanto isso, a Netflix vem apoiando iniciativas de diferentes órgãos, em nome do que chamam de "responsabilidade social", termo usado nesta semana para anunciar o aporte de R$ 5 milhões à Cinemateca Brasileira, via Lei Rouanet, algo inédito para a empresa.
O projeto será feito nos moldes do apoio financeiro dado à Cinemateca Francesa, há dois anos com seu logo fixado na entrada de uma de suas salas, mas sem naming rights ou poder decisório sobre a programação.
A reportagem apurou ainda que a empresa negocia com o Ministério da Educação a implementação de salas de cinema em institutos federais. Anteriormente, cinco institutos com cursos técnicos de cinema seriam contemplados, mas, devido a problemas de logística e estrutura, apenas um deles servirá de piloto, num primeiro momento, se o acordo vingar.
A adaptação de auditórios pré-existentes seria feita nos moldes dos CEUs do Circuito Spcine, rede de salas públicas da Prefeitura de São Paulo, e integraria o Fundo Netflix pela Equidade Criativa, que promove formação no audiovisual nos países onde está presente recentemente, o México passou pela experiência, após uma parceria com seu Ministério da Cultura.
O Instituto Federal de Brasília, um dos espaços avaliados para o projeto, tem em seu corpo docente Patrícia Barcelos, ex-servidora do MEC que gerou descontentamento no setor ao ser indicada, em outubro passado, para a direção da Ancine, a Agência Nacional do Cinema. Em carta à Secretaria do Audiovisual, associações manifestaram preocupação por seu histórico mais próximo à área da educação.
Quando ocupou cargo no MEC, Barcelos tentou implementar junto com a RNP, a Rede Nacional de Ensino e Pesquisa, vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, um circuito de salas de cinema em instituições de ensino. Ela teria cortado laços com o órgão, porém, após a entrada da Netflix nas negociações.
Segundo produtores e servidores do audiovisual ouvidos pela reportagem, a indicação de Barcelos para a Ancine abriria uma linha de comunicação mais direta entre a agência e a plataforma. Procurado, o Ministério da Educação afirma em nota que o projeto está "em fase de estudos e debates no âmbito da Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica".
A Netflix, apesar de manter parcerias público-privadas do tipo em outros territórios, não quis se manifestar sobre as que estão em curso no Brasil.
Uma pessoa próxima às negociações, ouvida em condição de anonimato, diz que as tentativas de acordo para investimentos em equipamentos públicos são anteriores aos PLs que tramitam no Congresso e que eles mal tomaram forma.
Já com o Ministério do Turismo e a Embratur, a reportagem apurou que a gigante estuda parcerias, como uma campanha de promoção do turismo a partir de personagens e cenários de produções da plataforma. Mais uma vez, a iniciativa toma como molde algo semelhante feito em países como a África do Sul e a França, esta notoriamente protecionista ao exigir que 20% dos lucros da Netflix no território sejam reinvestidos na indústria local.
Em nota, a Embratur diz que não fechou contrato para realização de campanha promocional com a Netflix.
A agência afirma que mantém diálogo institucional com a Netflix e as demais plataformas de streaming para firmar parcerias que promovam destinos turísticos do Brasil.
Tema não prioritário para a precursora do streaming, mas que vem chamando a atenção de seus pares, em especial o Amazon Prime Video, é a criação de uma "film commission" federal, uma entidade responsável por atrair produtoras para gravarem filmes e séries no Brasil, por meio de incentivos fiscais.
O Amazon Prime Video não quis dar entrevista. Fontes próximas à empresa, porém, afirmam que ela tem participado ativamente das discussões. A reportagem apurou que, após anos de tentativas de convencimento, por parte das plataformas, pela criação de uma comissão, o governo enfim embarcou na ideia neste primeiro semestre.
Como outras capitais brasileiras, São Paulo já tem uma "film commission" própria, dentro da Spcine, usada por plataformas como a Max, outra que tenta construir uma linha de diálogo mais assertiva com agentes públicos. Não à toa, investiu US$ 12 milhões para produzir sua primeira novela, "Beleza Fatal", na capital paulista, depois de quase levar seu set à Colômbia.
Assim, a estreia de "Beleza Fatal", considerada um sucesso na plataforma, foi marcada por uma festa luxuosa no Theatro Municipal, na qual estiveram presentes vários servidores públicos.
Um estudo da Spain Film Commission mostrou que cada euro investido em produções gravadas na Espanha gerou um retorno de 9 para a economia local. Os dados teriam convencido o vice-presidente Alckmin, em reunião com representantes de plataformas, de que a iniciativa não se trata de mero repasse de verba ao setor privado, mas de um investimento com possibilidade real de retorno.
Tudo isso tempera o contexto que envolve o PL de taxação do streaming e seu aparente clima de conciliação. A conversa do setor audiovisual com o vice-presidente e Jandira Feghali foi elogiada pelos produtores independentes, entre eles Minom Pinho, da diretoria federal da Apaci, a Associação Paulista de Cineastas.
"Foi a primeira vez desde o início do governo que o setor audiovisual teve a oportunidade de expor em profundidade os principais pleitos e desafios da regulação a uma autoridade em cargo de presidente", diz ela, que ressalta o atraso nessa regulação, considerando que as plataformas desembarcaram no país há mais de uma década.
Esse cenário ainda está sob influência do recente anúncio de tarifaço do presidente americano Donald Trump. O governo americano divulgou, nesta segunda-feira (31), um documento sobre as tarifas aplicadas a produtos americanos exportados ao exterior. Dentre seus diversos pontos, o relatório critica taxas impostas a serviços audiovisuais estrangeiros, como o cinema e a televisão.

ASSUNTOS: Arte e Cultura