Mostra reúne obras de Nelson Leirner, artista que expôs as entranhas da arte
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - É como se estivéssemos em uma festa infantil. As cores do ambiente são vibrantes, com o predomínio de um vermelho sangue que deixa o público aturdido. Em uma das paredes, há um mapa feito com centenas de figurinhas de personagens como Mickey Mouse, Piu-Piu e das "Meninas Superpoderosas". Em outra extremidade, é possível ver soldadinhos de plástico e aviões de brinquedo fixados sobre uma tela em branco.
Embora apresente objetos do universo infantil, a exposição "Nelson Leirner - Parque de Diversões" nada tem de ingênua ou inocente. Afinal, o artista por trás das obras era célebre pela poética afiada e pelas críticas mordazes ao mundo das artes.
Em cartaz na Caixa Cultural de São Paulo, essa é a maior mostra dedicada ao artista desde sua morte, em 2021. São 74 obras feitas em diferentes suportes, como esculturas, pinturas, colagens e fotografias. Apesar da diversidade de formas, a acidez e a ironia fina são elementos que unem a maior parte das peças.
É o caso, por exemplo, de um globo terrestre da série "Assim é...Se lhe Parece", de 2003. Na obra, Leirner cobriu todos os continentes com figurinhas da bandeira americana, como se mostrasse que o mundo foi colonizado pelo ideário ianque.
Há ainda outro mapa da mesma série em que vemos a maior parte da América Latina coberta por imagens de caveiras, enquanto figurinhas sorridentes da Minnie e do Mickey enfeitam os países norte-americanos. Com objetos prosaicos, Leirner refletia sobre as desigualdades que põem países pobres e ricos em lados opostos do xadrez geopolítico.
Não por acaso, as obras da exposição frequentemente fazem alusão à ideia de jogo, como acontece na série "Xeque- Mate".
"Ele mostrava que tudo é um jogo de cena com interesses envolvidos", diz Agnaldo Farias, curador da mostra e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, a USP. "Grande parte da poética dele traz elementos ligados a brinquedos, demonstrando o caráter político e ideológico desses objetos."
Leirner parecia entender que esses itens não são feitos apenas para entreter, mas também para difundir visões de mundo. "O imaginário construído em torno deles é tomado por preconceitos e por ideologias eminentemente brancas, machistas e beligerantes."
Por falar em guerra, a exposição traz trabalhos em que o artista incorporou peças infantis ligadas a conflitos armados, como tanques, caças e mísseis. Uma das obras mais interessantes nesse sentido é "O Grande Baile", de 2012.
Nas laterais de uma superfície plana, há dezenas de peças de cerâmica retratando noivos. No centro, bibelôs de anjos e santos parecem dançar nos braços de soldadinhos de plástico.
A união de elementos tão díspares passa a fazer sentido quando lembramos os valores sociais que esses objetos representam. Os casais simbolizam a ideia de família, os soldados aludem ao Estado e as imagens sacras, à igreja. Três instituições essencialmente disciplinadoras.
"Ele misturava tudo e fazia uma espécie de salada desses elementos, mostrando como a religião, a política e o militarismo vão se embaralhando", diz Farias.
Leirner também misturava com maestria o erudito ao popular. É isso o que fez na série "Quadro a Quadro - Cem Monas", em que imaginou a pintura de Leonardo da Vinci de diferentes maneiras, inclusive com uma máscara de Carnaval. "Ele valorizava expressões consideradas mais simples e sem erudição", diz o pesquisador. "Nelson era contra uma arte metida a besta."
Por isso mesmo, ele voltou a artilharia para a abstração geométrica, movimento que se tornou canônico no Brasil a partir dos anos 1950. Em tom zombeteiro, dizia que qualquer restaurante de beira de estrada vendia tapetes geométricos feitos com pele de vaca.
Em 1999, decidiu provar esse ponto na Bienal de Veneza. À época, apresentou a série "Construtivismo Rural", em que a tinta foi substituída por couro de boi costurado de modo a criar formas geométricas. Uma das peças dessa série faz parte da exposição. "Para ele, a arte se alimentava daquilo que não era arte. O artista também era um não artista", diz Farias.
Entre os anos 1970 e 1990, foi professor da Fundação Armando Alvares Penteado, a Faap. Nesse período, convidou diferentes profissionais, como pedreiros, dentistas e médicos, para desenhar flores em uma tela sob sua orientação.
Além dos trabalhos de seus pupilos, o próprio artista elaborou uma pintura para a iniciativa, que deu origem à exposição "Projeto Aula", na galeria Luisa Strina, em São Paulo.
Os trabalhos, também expostos na Caixa Cultural, têm dois elementos em comum -todos são esteticamente parecidos e nenhum deles traz o crédito do autor. Com isso, Leirner desafia a ideia de autoria, conceito tão caro ao circuito das artes.
Essa, porém, não foi a primeira vez que ele confrontou convenções. Em 1966, criou ao lado de Wesley Duke Lee e Geraldo de Barros a galeria Rex, projeto que combatia a rigidez concretista por meio de obras irreverentes e pouco convencionais.
A empreitada durou menos de um ano e terminou de forma anedótica. Eles organizaram uma exposição em que os visitantes poderiam levar as obras de arte para casa. Em poucos minutos, a multidão esvaziou a galeria e vendeu os itens no meio da rua.
Seu projeto mais ruidoso, porém, foi feito em 1967, quando enviou um porco empalhado dentro de um engradado de feira para o 4º Salão de Arte Moderna de Brasília.
O bicho foi aceito pelos avaliadores, dando início a um debate acalorado sobre o que define uma obra de arte. Leirner, aliás, ajudou a atiçar a polêmica ao publicar um artigo pedindo explicações sobre os critérios por trás da escolha dos jurados.
No entanto, o controverso porco não demorou a ser devorado por um mercado hábil em transformar quase tudo em commodity, inclusive a crítica. Atualmente, é uma das obras mais importantes da Pinacoteca de São Paulo. "A sociedade aprendeu a consumir o artista. Não tem como criticar sendo consumido. Todos nós viramos marca registrada", disse à Folha, em 2011.
São palavras de alguém que conhecia desde criança as engrenagens que fazem girar o mundo das artes. Ele era filho da escultora Felícia Leirner e do empresário Isai Leirner, casal influente que ajudou a fundar o Museu de Arte Moderna de São Paulo.
Entre 1947 e 1952, estudou engenharia têxtil nos Estados Unidos, mas acabou virando artista por influência do pai. Apesar disso, continuava a encarar esse universo com o espanto de um forasteiro. Possivelmente vem desse estranhamento a natureza questionadora de seu projeto estético.
"É um trabalho que segue sendo atual justamente por questionar a própria noção de arte. Ela se alimenta e avança na medida em que é questionada", diz Farias, acrescentando que o artista era um exímio questionador. "Ele foi um espírito muito vivo, crítico e ácido até o fim."
Nelson Leirner - Parque de Diversões
Quando Ter. a dom., das 9h às 18h. Até 23 de fevereiro
Onde Cultural São Paulo Praça da Sé, 111, São Paulo
Preço Grátis
Classificação Livre
ASSUNTOS: Arte e Cultura