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Ruínas de Brasília, reais e metafóricas, inspiram artistas em mostra no Rio

Por Folha de São Paulo

13/08/2024 23h03 — em
Arte e Cultura



RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) - É uma vista clássica de Brasília, as torres do Congresso ladeadas pelas duas cúpulas desenhadas por Oscar Niemeyer, mas algo está fora da ordem. No lugar da limpidez do traço modernista, a estrutura de concreto na imagem é construída com estilhaços de vidro, restos de carpete e cartuchos de balas.

O trabalho de Vik Muniz, que abre a mostra "Brasília", agora em cartaz nas galerias da FGV Arte, no Rio de Janeiro, é uma construção às avessas, uma composição criada a partir de escombros, tudo o que foi deixado no rastro da depredação dos palácios da capital federal no dia 8 de janeiro do ano passado. É a visão cristalina da cidade alicerçada sobre os restos de sua destruição, um curto-circuito visual que restaura o monumento com seus próprios fragmentos.

Num movimento contrário, outro artista da mostra organizada por Paulo Herkenhoff leva à galeria as sobras dos ataques golpistas sem floreios ou disfarces. Siron Franco exibe um retalho do carpete do Supremo Tribunal Federal com as pegadas avermelhadas dos invasores, a terra rubra do cerrado marchando alvoroçada sobre a sede do Judiciário, um dos palácios mais depredados durante as invasões golpistas.

Franco expõe o tecido como um fotograma instantâneo da barbárie, um sudário da destruição das sedes do poder que dá um caráter tátil e emudecido à fúria daquela tarde de verão. É palpável a presença do tropel de gente que deixou suas pegadas ali, vestígios de um dia que não se apaga da memória, muito em parte por causa das imagens da destruição e de obras como essas, feitas a quente nos meses que se seguiram à tentativa de golpe.

O mais revelador nesse conjunto de trabalhos, no entanto, são as obras que mesmo décadas antes dos ataques deliberados a Brasília já pressentiam algo estranho no ar, sinais de tempestades que podiam se abater sobre os palácios da cidade seja pelas recorrentes crises políticas do país, seja pela panela de pressão que é uma terra desigual como a nossa.

Nada ilustra isso melhor no imaginário que os excessos plásticos, a arquitetura teatral e extravagante erguida no cerrado em contraste com as periferias violentas, as cidades-satélite muito mais perto do chão de terra batida do que de alguma órbita sideral. É próprio da construção da cidade, como quando Lucio Costa, o urbanista de Brasília, descreve em suas memórias o espanto diante de gente ordinária a transitar pela rodoviária que desenhou, o homem comum que não cabe no delírio formal do plano piloto.

Uma instalação de Rosângela Rennó, realizada há três décadas, escancarava esse drama. Em 50 retratos dispostos no chão e na parede da galeria, a artista mostra o rosto de trabalhadores, os candangos, que morreram na construção da capital em acidentes nos canteiros de obra. Eram as vítimas de um furor construtivo que prometia 50 anos em cinco, o sertão do país desbravado.

Eles ali estão identificados por combinações de letras e números, todos de feições duras feito concreto. Do outro lado da sala, são outros rostos que nos olham sem olhar, fragmentos de retratos dos homens que comandaram o país durante a ditadura militar, só a boca, caretas macabras impressas não sobre papel mas sobre pregos martelados, o escárnio metálico construído num ato de violência pelo artista Rafael Pagatini.

Na época do regime, Cildo Meireles traduziu a opressão daqueles tempos noutro ato de construção de uma ruína. Ele abriu uma clareira ao lado do lago Paranoá e ateou fogo a gravetos, folhas e o que mais encontrou no descampado, guardando em três caixas as cinzas e os restos esturricados, cadáveres de uma paisagem --uma das caixas está enterrada até hoje perto do lago na capital, com um mapa na mostra indicando o lugar, e as outras duas estão agora na exposição carioca, como urnas funerárias dos anos de chumbo.

Mais literal, um trabalho de Edu Simões não disfarça a violência no planalto central do país. Sua visão apocalíptica é uma fotomontagem em que um mar de sangue se forma às portas do Congresso Nacional. Caixões flutuam na superfície vermelha, empurrados por indígenas que atravessam as ondas.

Essa carnificina na raiz da cidade também está num trabalho de Christus Nóbrega, que imagina Lucio Costa consultando os ossos de escravizados enterrados bem ali, no quilombo Mesquita. A posição das ossadas remexidas pelo urbanista, na narrativa de Nóbrega, indicaria a posição de seus palácios, a estrutura viária da cidade em forma de avião.

Nos muitos escritos sobre Brasília, inclusive de seu próprio urbanista, as comparações da cidade com o corpo vivo, ou mesmo uma flor, são constantes. Os lotes de terra da capital já foram descritos como bifes ensanguentados, suas ruas, aortas pretas de um coração de cimento. Aqui, no trabalho de Nóbrega, estamos no osso, na pureza branca calcificada.

É uma visão que lembra a própria ideia de Brasília arruinada pensada por Oscar Niemeyer. Quando os militares tomaram o poder no golpe de 1964, o arquiteto da capital se exilou em Paris e lá pintou dois quadros que mostram a cidade destruída. Num horizonte devastado, um lodaçal assustador, despontam só fragmentos das colunas do Palácio do Planalto e do Palácio da Alvorada, como esqueletos de beleza espantosa, a parte pelo todo do esplendor da cidade já morta.

Esses trabalhos não estão na exposição agora no Rio de Janeiro, mas o mal-estar que denunciam atravessa mesmo as obras mais recentes de artistas que despontam no circuito. Helô Sanvoy lembra os estandartes em que Hélio Oiticica escreveu "seja marginal, seja herói" estampando sobre tecido a visão do plano piloto, essa imagem também uma espécie de fóssil fundador da aventura brasiliense, e a frase "na manhã que se inicia, escolhe a bandeira e renuncia".

Pintores de gerações distintas, Evandro Prado e Fernando Lindote têm juntas na exposição outras telas de pendor premonitório. Numa composição em preto e branco, Prado mostra o muro temporário erguido em frente ao Congresso para apartar o que eram então as brigas entre quem apoiava e quem repudiava o impeachment de Dilma Rousseff. Lindote vislumbra numa Brasília toda vermelho-sangue a passagem de um tanque de guerra preto --a tela é do ano de 2013 e suas chamadas jornadas que reverberam até agora.

Brasília, A Arte da Democracia

Quando: Ter. a sex., das 10h às 20h; sáb. e dom., das 10h às 18h. Até 18 de agosto

Onde: FGV Arte - praia de Botafogo, 190, Rio de Janeiro

Preço: Grátis


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