Juiz recua na ‘cura gay’ e permite atendimento apenas com finalidade científica
BRASÍLIA - O juiz Waldemar Cláudio de Carvalho, da 14ª Vara Federal de Brasília, decidiu nesta sexta-feira permitir que psicólogos façam atendimentos a homossexuais insatisfeitos com a própria sexualidade, com o propósito de investigação científica, mas, desta vez, o magistrado não deixou expresso na decisão a possibilidade de atendimentos com a finalidade de "(re)orientação sexual". Em 15 de setembro, uma liminar do juiz permitiu a chamada "cura gay", o que gerou forte repercussão nacional e internacional.
Na decisão provisória, em setembro, Carvalho escreveu que o Conselho Federal de Psicologia (CFP) não deveria impedir "atendimento profissional, de forma reservada, pertinente à (re)orientação sexual". Agora, no mérito, o magistrado determinou que o CFP não aja para impedir "os psicólogos, sempre e somente se forem a tanto solicitados, no exercício da profissão, de promoverem os debates acadêmicos, estudos (pesquisas) e atendimentos psicoterapêuticos que se fizerem necessários à plena investigação científica dos transtornos psicológicos e comportamentais associados à orientação sexual egodistônica". A egodistonia é a não aceitação da homossexualidade, com consequentes transtornos à pessoa que vive essa situação.
Reportagem publicada pelo GLOBO na segunda-feira revelou que, em vigor há três meses, a decisão liminar que abriu brechas para o que ficou conhecido como “cura gay” no país propiciou o aumento da atividade dos consultórios de psicólogos adeptos de supostas técnicas de reversão da orientação sexual. A despeito de serem totalmente condenadas pelo CFP, órgão responsável por normatizar o exercício da profissão, as terapias ofertadas vão na direção de estimular pessoas que se dizem dispostas a tentar abandonar o desejo homossexual para buscar a heterossexualidade.
Ancorados na decisão liminar da Justiça Federal em Brasília, psicólogos aumentaram a oferta de terapias no sentido da “reorientação sexual”. Profissionais que oferecem esse tipo de atendimento ouvidos pelo GLOBO disseram que a procura nos consultórios aumentou desde 15 de setembro, quando o juiz da 14ª Vara Federal decidiu em favor de 23 psicólogos que ingressaram com a ação popular para poder ofertar essas terapias.
A resolução do CFP questionada na Justiça estabelece há quase 19 anos normas para atuação dos psicólogos na esfera da orientação sexual. A liminar concedida não derrubou a resolução, mas obrigou o conselho a dar nova interpretação ao texto. Desde 17 de maio de 1990, há 27 anos, a Organização Mundial de Saúde (OMS) deixou de classificar a homossexualidade como patologia e a retirou da Classificação Internacional de Doenças (CID).
Na decisão nesta sexta-feira, Carvalho rejeitou o pedido para suspender ou anular todos os processos éticos e disciplinares abertos com base na resolução do CFP. O juiz também vedou os psicólogos de fazerem propaganda ou divulgação da "cura gay".
"É evidente que o atendimento psicoterapêutico a pessoas em conflito com sua própria orientação sexual deve ser realizado de forma reservada, sem propagação (qualquer forma de propaganda), conforme já consignado na liminar, respeitando sempre o sigilo profissional, a vontade do paciente e, sobretudo, a dignidade da pessoa assistida", escreveu o juiz.
Na decisão, Carvalho afirmou que deve ser garantida aos psicólogos "a plena liberdade científica de pesquisa". Assim, a eles fica permitido "realizar estudos e os respectivos atendimentos psicoterapêuticos pertinentes aos transtornos psicológicos e comportamentais associados à orientação sexual egodistônica". O juiz lembrou que a egodistonia está prevista na Classificação Internacional de Doenças (CID). Assim, não deve haver "censura ou necessidade de licença prévia" por parte do CFP.
"A liminar deferida por este juízo e em vigor desde setembro passado, por si só, ao contrário do que quis fazer crer o CFP em sua contestação, não provocou qualquer ato de incentivo à discriminação ou à intolerância sexual, ainda que tenha sido mal compreendida por parcela significativa da mídia e nas redes sociais", escreveu o juiz. "Ao contrário, conforme relatado pelos autores, ela serviu para que aqueles profissionais pudessem exercer sua profissão de forma mais livre e independente, atendendo a todos aqueles que voluntariamente os procuravam em busca de apoio, de autoconhecimento, para a compreensão de sua própria sexualidade."
O magistrado disse ainda que o CFP não pode praticar "qualquer espécie de censura" aos psicólogos que queiram promover estudo ou investigação científica relacionada à homossexualidade egodistônica. "A atitude do CFP ora combatida apresenta-se intransigente, na medida em que não admite, aprioristicamente, qualquer outra alternativa de atendimento aos homossexuais egodistônicos, mesmo quando estes, voluntariamente, procuram auxílio, no recinto reservado dos consultórios psicológicos, como se tal procedimento pudesse representar, por si só, estímulo ao preconceito, à discriminação e ao incremento da violência contra a comunidade LGBTI."
Carvalho afirmou na decisão que não cabe a ele dizer que tipo de terapia deve ser adotada nesses casos de homossexualidade egodistônica. "Apesar da homossexualidade não ser uma doença, conforme já reiterado inúmeras vezes, a egodistonia é, sim, um transtorno psíquico devidamente catalogado na Classificação Internacional de Doenças (CID-10), a merecer a devida atenção da Psicologia e demais ciências do comportamento humano."
O CFP, contrário à decisão, protocolou em setembro um recurso no Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) para reverter a decisão do juiz. Não houve decisão ainda. Segundo o CFP, é falso, por exemplo, a tese de que haveria perseguição em massa contra psicólogos que queriam oferecer esse tipo de tratamentos. Isso porque, nos últimos cinco anos, dos 260 processos éticos disciplinares em curso no CFP, apenas três dizem respeito à resolução de 1999 que proíbe a "cura gay".
A reportagem procurou o CFP para saber se a entidade concorda com a decisão no mérito. Ainda não houve retorno.
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