Governo Lula recorre a manobras para ampliar gastos na reta final de 2024
BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) - O governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) recorreu a manobras para ampliar gastos na reta final de 2024, com liberação de recursos fora das regras fiscais, adiamento de repasses e transferências de recursos fora do Orçamento para financiar políticas públicas.
O Executivo defende a legalidade das medidas, mas técnicos do próprio governo, ouvidos sob condição de anonimato, avaliam que, no conjunto, as iniciativas podem gerar ruído adicional no momento em que a credibilidade da política fiscal já está em xeque.
O mais recente dos expedientes permitiu à União injetar R$ 6,5 bilhões em um fundo privado para bancar novas ações de reconstrução no Rio Grande do Sul, atingido por enchentes severas.
As obras serão executadas nos próximos anos, mas o governo editou, em 11 e 23 de dezembro, duas MPs (medidas provisórias) para liberar os recursos de forma imediata. O objetivo era garantir o repasse ainda sob a vigência do estado de calamidade pública, que autoriza a exclusão desses gastos das regras fiscais.
Sem a manobra, as despesas precisariam disputar espaço com outras políticas dentro dos limites do arcabouço fiscal de 2025 em diante. Elas também pesariam sobre o resultado primário (diferença entre receitas e despesas, excluído o serviço da dívida pública) que conta para a meta fiscal.
Segundo um técnico da área econômica, o Ministério da Fazenda demonstrou pouca resistência à MP, apesar de alertas internos. Mesmo fora das regras, o gasto extra contribui para elevar a dívida pública, cuja trajetória ascendente é motivo de preocupação entre agentes econômicos.
Técnicos que se colocaram contra a MP temem que a medida reforce a percepção de que o governo tem "espírito gastador", apesar das promessas de ajuste nas contas feitas sob verniz fiscalista.
Procurados, os ministérios da Fazenda e do Planejamento não se manifestaram.
A Casa Civil disse que o instrumento "confere previsibilidade e segurança jurídica para a realização dos investimentos já definidos, de natureza plurianual, para enfrentar a calamidade pública no estado do Rio Grande do Sul".
Segundo o órgão, os recursos serão aplicados em obras aprovadas pelo comitê gestor do fundo, formado por Casa Civil, Fazenda e Ministério das Cidades.
A pasta disse ainda que "fundos privados são utilizados há mais de 20 anos como instrumento para execução de políticas públicas em diversas áreas".
O governo também adotou outras manobras para ampliar despesas ou evitar a necessidade de conter gastos na reta final do ano.
Em uma delas, o Executivo adiou repasses de incentivo à cultura previstos na Lei Aldir Blanc. A decisão evitou um bloqueio maior no Orçamento de 2024 para compensar o crescimento de despesas obrigatórias, como benefícios previdenciários.
A cronologia dos ajustes chamou a atenção de técnicos da área econômica. Parte do repasse original de R$ 3 bilhões foi subtraído das estimativas oficiais de gastos já em 20 de setembro, no relatório de avaliação do Orçamento relativo ao quarto bimestre, sob o argumento de que havia "restrições impostas pela legislação eleitoral". Na ocasião, a decisão ajudou a abrir caminho à liberação de R$ 1,7 bilhão que estava bloqueado.
O relatório, porém, deve refletir a projeção da despesa em todo o exercício, e a Lei Aldir Blanc vigente à época ainda determinava a execução integral dos R$ 3 bilhões. Ou seja, eles precisariam ser empenhados (primeira fase do gasto, quando é feita a reserva de recursos para futuro pagamento), mesmo que depois da eleição. Apenas em 22 de novembro, dois meses depois, o presidente Lula editou uma MP para livrar o governo dessa obrigação.
A confusão foi tamanha que o relatório de novembro apontava um aumento nos gastos com a Aldir Blanc para efeitos do limite de gastos -era a devolução de parte do valor que já havia sido cortado antes, sem alarde e sem mudança legal. Uma semana depois, o governo ainda decidiu publicar um relatório surpresa para cortar de vez aquilo que havia acabado de devolver.
Técnicos experientes relatam, nos bastidores, dúvidas sobre a regularidade da operação no relatório de setembro, sem o respaldo da MP. A ala defensora da medida, por sua vez, argumenta que, além das restrições eleitorais, o documento refletia uma projeção de despesas do governo.
Fazenda e Planejamento não prestaram os esclarecimentos solicitados pela reportagem. O Ministério da Cultura disse que a legislação eleitoral "reduziu a capacidade de execução financeira" de estados e municípios, que ficaram com valores represados. Por isso, o governo federal optou por diluir os novos repasses.
Em outro caso, a equipe econômica recorreu a recursos parados em fundos públicos para abastecer o programa Pé-de-Meia, que paga bolsas para permanência dos alunos no ensino médio. A operação, feita fora do Orçamento, está na mira do TCU (Tribunal de Contas da União).
O governo transferiu R$ 6 bilhões do Fgeduc (Fundo de Garantia de Operações de Crédito Educativo), e uma lei sancionada no fim de dezembro autoriza a realocação de outros R$ 4 bilhões do FGO (Fundo de Garantia de Operações), usado como fiador de empresas e famílias na tomada de empréstimos. Em vez de retornarem ao caixa do Tesouro Nacional, os recursos serão agora usados para ampliar despesas.
Fazenda e Planejamento também não se manifestaram sobre o tema. O MEC (Ministério da Educação) disse que "todos os aportes feitos para o programa Pé-de-Meia foram aprovados pelo Congresso Nacional e cumpriram as normas orçamentárias vigentes".
A AudTCU (Associação de Auditoria de Controle Externo do TCU) também fez alerta recente de que a proliferação de ICTs (Instituição de Ciência, Tecnologia e Inovação) pode promover um "estrago fiscal" ao abrir brechas para gastos fora das regras. Sob esse selo, órgãos podem fazer parcerias com outras instituições, públicas ou privadas, e buscar financiamento para projetos específicos sem esbarrar nas amarras do Orçamento.
A AGU (Advocacia-Geral da União) anunciou sua habilitação como ICT no mês de dezembro, mas outros órgãos também já obtiveram reconhecimento semelhante -são cerca de 200, segundo a própria AGU.
O órgão disse à reportagem que a medida é estratégica e "não há qualquer burla ao ajuste fiscal", pois os recursos financeiros envolvidos, públicos ou privados, deverão ser destinados especificamente ao projeto de pesquisa e "costumam ser irrisórios frente ao orçamento público da instituição".
O economista-chefe da ARX, Gabriel Leal de Barros, afirmou que a sequência de manobras no apagar das luzes de 2024 acaba minando os esforços da equipe econômica de tentar dar credibilidade ao ajuste --por exemplo, por meio do pacote de contenção de gastos.
Em sua visão, o período atual se assemelha à origem da chamada nova matriz econômica, política de expansão fiscal implementada durante o governo Dilma Rousseff (PT) para impulsionar o crescimento.
"Começou assim, com pequenas brechas que à primeira vista não pareciam graves, mas foram várias, e o governo, quando viu conveniência e oportunidade, usou. Agora, vemos o governo buscando alternativas para poder acionar se e quando a economia desacelerar", afirmou Barros.
Segundo ele, a consequência na época foi o aumento da incerteza e da percepção de risco, sintomas que já começam a surgir agora. "O governo está trabalhando arduamente para alimentar essa desconfiança, em vez de entregar algo concreto", criticou.
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