Operadores se livram de 120 degraus e controlam guindastes de forma remota no porto de Santos
GUARUJÁ, SP (FOLHAPRESS) - Os 120 degraus estão escorregadios por causa da chuva fina, e a neblina não faz com que uma subida de 30 metros até uma cabine apertada, encardida e solitária seja uma grande ideia.
"Em dias assim você vê como a mudança foi boa."
Durante 16 anos, Érica Pereira Matias, 40, fez esse percurso escada acima quase todos os dias, para turnos de seis horas. Ficava o tempo todo sentada com as pernas afastadas para conseguir olhar para baixo. No solo, duas marcas de tinta branca mostravam onde o caminhão deveria estar. Com um controle parecido com joystick de videogame, ela usava o RTG, sigla que designa o guindaste de pátio usado em terminais portuários, para colocar contêineres em carretas.
"Tem o tempo para carregar e descarregar. Então, não pode ser devagar, mas não pode errar. Tem de ser rápido e preciso", completa.
Se, durante essas seis horas, a natureza chamasse, ela precisava alertar a coordenação da operação, descer 120 degraus, ir ao banheiro e depois fazer o caminho de volta.
Isso está no passado. Da mesma forma que ela foi a primeira mulher de sua turma a operar um RTG, foi também a pioneira a controlar um dos oito ARTGs comprados pela Santos Brasil, empresa dona de terminal do porto de Santos em que trabalha. Trata-se basicamente do mesmo guindaste, mas com operação remota. Tudo é feito de uma sala de controle no solo.
Érica é a única mulher entre os 12 funcionários que foram treinados a operar a máquina a distância, em terra firme. Eles e ela vão agora replicar o que aprenderam e ensinar mais 40 funcionários.
O investimento de R$ 130 milhões da Santos Brasil faz parte dos planos da empresa de descarbonizar sua operação. Também foram gastos mais R$ 15 milhões na eletrificação do pátio. Os oito ARTGs são elétricos, enquanto os demais 39 RTGs funcionam a diesel. A ideia é que todos estejam substituídos até 2031 e que a companhia seja net zero até 2040.
A troca vai impedir a emissão de 713 toneladas de CO2 por mês, como acontece atualmente. A redução será de 97%, promete a empresa.
A troca faz parte do projeto de ampliação e modernização do terminal. Foi gasto R$ 1,3 bilhão desde 2019. A conta final é estimada em R$ 2,6 bilhões. A estimativa é que, ao final da expansão, a capacidade passe dos atuais 2,4 milhões de TEUs (unidade equivalente a um contêiner de 20 pés de comprimento, oito de largura e oito de altura) para 3 milhões, em 2026.
Para a operação, foi montada uma sala de controle em que cada operador tem quatro terminais de vídeo à sua disposição e pode controlar mais de uma ARTG, se necessário. A mesa é móvel e, se quiser, o funcionário pode ficar de pé.
"O ARTG tem sensores para não sair do trilho virtual. São 23 câmeras, sendo cinco para identificar o caminho. É possível ver as quatro pontas do contêiner, o que a olho nu nem sempre o operador conseguia", afirma Ricardo Miranda, 55, diretor de tecnologia da Santos Brasil.
"A gente pode ir no banheiro, tomar água, café. Acho que é uma operação mais precisa, segura e confortável", diz Jairson Pinho de Lima, 49, que os outros colegas de trabalho adoram provocar chamando de "Jaílson".
"Normal. Meu pai, que se chamava Jair e me deu esse nome, só se chamava de Jaílson também", dá de ombros o operador que sonhava em ser piloto de avião, mas não tinha dinheiro para tirar o brevê. Trocou isso pelo RTG a 30 metros de altura.
Um passo futuro também será tornar remota a operação dos portêineres, guindastes ainda maiores, que fazem a operação no cais, carregando e descarregando contêineres dos navios. Os próximos dois, que a empresa já comprou e espera a entrega, têm mesa para essa transição.
E transição é algo constante na vida dos operadores de guindaste.
"Eu era motorista de carreta, não tinha nenhuma experiência em RTG. Foi uma mudança grande. Agora vou ensinar outras pessoas a operar. Trabalhar aqui no chão, em equipe, é melhor. Lá em cima você fica sozinho. É muito solitário", lembra Marcio Pereira da Silva, 42, há 16 anos na Santos Brasil.
São seis horas de solidão em que o pior cenário possível é avariar um contêiner contendo carga de milhões de reais. Ou causar um acidente. Não é algo que eles tenham tempo para pensar, seja a 30 metros do solo ou na operação remota.
Se essa novidade tivesse chegado mais cedo, Érica nem teria se afastado. Há dois anos, ela tentou esconder que estava grávida para continuar trabalhando na operação de RTG. Mas quando começou a passar mal, não houve o que fazer.
"Eu adoro operar [o guindaste], mas tive problemas e fui colocada no treinamento. No remoto, eu poderia ter continuado. No futuro, quando parar, penso em fazer outras coisas. Mas quero seguir operando por muito tempo ainda", diz ela.
Ex-corretora de imóveis, ela ganhou bolsa e se formou, com pós-graduação, em veterinária. Um caminho de atividades bem distintas e que a desafiaram.
"Eu venço os meus medos", define.
Há 16 anos ela sobe os 120 degraus apesar de ter medo de altura.
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