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Reino Unido revisa legislação de apostas para conter vício, mas ativistas veem mudanças como ineficientes

Por Folha de São Paulo

11/10/2024 9h45 — em
Economia



LONDRES, INGLATERRA (FOLHAPRESS) - Torcedor do Manchester United, Philip Tomlinson começou a apostar com os amigos durante as partidas da Premier League, a primeira divisão do campeonato inglês de futebol. Rapidamente, progrediu para caça-níqueis e cassinos online —e perdeu o controle.

Gastou todo o dinheiro de uma viagem de férias, depois começou a vender objetos pessoais para quitar empréstimos que fazia para pagar dívidas e continuar apostando. Em 2017, aos 29 anos, tirou a própria vida. A família de Philip é uma das assistidas pela ONG Gambling with Lives (Apostando com Vidas), que atua na prevenção e conscientização do suicídio ligado a apostas no Reino Unido. Segundo os parentes, o jovem mencionou em despedida o vício como seu "maior arrependimento".

A história de Philip não é única. Dados oficiais utilizados pelo governo do Reino Unido estimam que haja entre 117 e 496 suicídios relacionados a apostas por ano no país. Para ativistas, pesquisadores e profissionais de saúde pública, isso é apenas uma parte pequena dos problemas sociais causados pela normas de regulação liberais instituídas há quase vinte anos. "Nós não queremos banir as apostas como um todo, mas com certeza entendemos que muitas mudanças precisam ser feitas na lei", diz Tom Flemming, gerente de comunicação da Gambling with Lives.

O Reino Unido tem um dos maiores mercados de apostas do mundo, e foi um dos pioneiros na regulação de apostas online. O Gambling Act (Ato das Apostas) de 2005, apresentado pelo governo do trabalhista Tony Blair, permitiu pela primeira vez na história britânica propagandas de cassinos e outros tipos de jogos de azar na televisão, e instituiu uma comissão reguladora nacional e independente.

Desde então, o mercado de apostas, principalmente online, vem crescendo. Segundo a comissão reguladora, o mercado online cresceu de 4,2 bilhões de libras (R$ 30,5 bilhões, na cotação atual) no ano fiscal de 2015/2016, para 6,5 bilhões de libras (R$ 46,8 bilhões) no período de 2022/2023. Por outro lado, a estimativa de arrecadação com o setor neste ano é de 3,3 bilhões de libras (R$ 23,8 bilhões).

Em 2018, dados da comissão reguladora apontam que 54% dos adultos do Reino Unido fizeram algum tipo de aposta. Mesmo retirando a loteria nacional, similar à Mega-Sena brasileira, o número de apostadores chega a 40%. Desse total, estima-se que cerca de 300 mil pessoas atinjam o patamar de "apostadores problemáticos".

O objetivo da legislação de 2005, de acordo com o governo, seria impedir o uso de jogos de azar para fins ilegais —como financiamento do crime organizado, e a prevenção da exploração de crianças e pessoas vulneráveis por casas de apostas. Quase 20 anos depois, familiares e ativistas dizem que essa segunda parte não foi cumprida.

"Nas últimas duas décadas, o que nós vimos foi uma completa normalização e proliferação das apostas", diz a professora Gerda Reith, professora da Universidade de Glasgow, na Escócia. "E vinte anos é uma eternidade em anos da internet, então a legislação está muito ultrapassa principalmente no que diz respeito às apostas online."

Em 2023, o governo do conservador de Rishi Sunak publicou uma diretriz para alteração da legislação de 2005. Entre as propostas, estão a criação de um fundo obrigatório a ser pago pelas empresas de apostas para custear ações de prevenção e tratamento de vício, e a implementação de verificações de vulnerabilidade financeira. Com a troca de governo em julho de 2024, com a vitória trabalhista nas eleições, especialistas dizem que não há certeza sobre quando e se as mudanças serão implementadas.

Para Reith, membro do grupo de estudos sobre apostas da Universidade de Glasgow, as revisão tem problemas. "O fundo obrigatório não regula nada, serve apenas como redução para o dano que já foi feito", afirma ela, que diz que a mudança proposta também não atinge um dos principais pontos de preocupação de ativistas e pesquisadores: as propagandas.

"É uma omissão enorme que isso não seja tratado na legislação" afirma ela, que defende o retorno da proibição de propagandas de apostas na televisão, com forma de evitar que anúncios cheguem, por exemplo, a crianças.

O futebol é líder nos patrocínios e anúncios de apostas. Na Premier League, onze equipes são patrocinadas por bets, e um estudo da Universidade de Bristol mostrou que no primeiro fim de semana da temporada 2024 do campeonato, os torcedores foram bombardeados com pouco mais de 29 mil anúncios de apostas —o equivalente a 54 propagandas por minuto de partida.

"Quase todas as nossas histórias têm menção ao futebol", diz Flemming, da Gambling with Lives. "Antes da aposta online, você apostava no resultado da partida e esperava 90 minutos para saber se ganhou ou perdeu. Agora, podendo apostar em micro-lances como cartões ou escanteios, você fica conectado o jogo inteiro, apostando em vez de assistir", afirma ele.

Alvos de críticas e preocupações em relação às casas de apostas, os clubes têm apostado em iniciativas de auto-regulação. Em 2023, anunciaram a decisão de banir logos de empresas de apostas na frente das camisas, e, em 2024, publicaram um código de conduta a ser implementado antes do início da temporada.

Flemmings considera as medidas insuficientes. "Você ainda pode ter propaganda em outras partes do uniforme e no estádio, então acaba funcionando mais como uma maneira de escapar de uma regulação de fato", afirma. Os clubes foram poupados na revisão proposta pelo governo, que não limita ou altera regras de patrocínio futebolístico.

Uma reportagem de setembro de 2024 do jornal inglês Guardian mostrou que 10 dos 20 times já descumpriram o próprio código de conduta, que determina que anúncios de aposta sejam direcionados apenas a audiências com mais de 18 anos. A reportagem afirma que propagandas dos patrocinadores continuam sendo exibidas em sites direcionados a torcedores júnior, e aparecem inclusive no uniforme das equipes sub-18.

A relação entre apostas e os estádios, onde a presença masculina ainda é majoritária, ajuda a explicar uma outra dimensão social das apostas no país: a de gênero. Homens compõem a maior parte dos apostadores e também dos viciados em apostas no país, chegando a uma diferença de participação de 15% do total da população adulta masculina contra 4% de mulheres quando considerado apenas o mercado online. Segundo a Gambling with Lives, a maioria das famílias assistidas perdeu homens jovens.

"Nós temos dificuldade de enxergar esse problema com uma lente de gênero, mas é preciso ter políticas que levem isso em consideração", diz Peter Baker, diretor da ONG Global Action for Men's Health (Ação Global para a Saúde dos Homens).

Ele afirma que características como maior dificuldade de procurar ajuda para problemas emocionais pode levar homens a um risco elevado de vícios como apostas. "Isso é uma generalização, claro, mas nós vemos a mesma coisa com álcool e drogas, então precisamos de ações que sejam direcionadas à população masculina, como campanhas de saúde mental e de serviços de ajuda direcionadas."

O Betting and Gaming Council (Conselho de Apostas e Jogos), que representa as empresas, afirma que a indústria cria empregos e gera arrecadação de impostos, movimentando a economia. Eles também afirmam em seu site que o objetivo das empresas é criar um ambiente de apostas seguras, especialmente para pessoas jovens e vulneráveis.


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O Portal do Holanda foi fundado em 14 de novembro de 2005. Primeiramente com uma coluna, que levou o nome de seu fundador, o jornalista Raimundo de Holanda. Depois passou para Blog do Holanda e por último Portal do Holanda. Foi um dos primeiros sítios de internet no Estado do Amazonas. É auditado pelo IVC e ComScore.

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