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Destruição de represa gera caos e ameaça usina nuclear na Ucrânia

Por Folha de São Paulo

06/06/2023 19h00 — em
Mundo



SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Em um dos mais dramáticos incidentes dos 15 meses da Guerra da Ucrânia, uma represa vital no sul do país invadido pelos russos foi destruída na madrugada desta terça-feira (6). Milhares de pessoas começaram a ser retiradas devido à inundação, e a ação ameaça afetar a maior usina nuclear da Europa.

Russos e ucranianos se acusam mutuamente pelo incidente na represa de Nova Kakhovka, que fica na porção ocupada por Moscou em Kherson. Não está claro o que aconteceu, se uma explosão planejada como Kiev acusava os invasores de tramar havia meses ou, como afirmam os invasores, um ataque com artilharia durante a contraofensiva iniciada pelo governo de Volodimir Zelenski no domingo (4).

Do ponto de vista tático, em tese a destruição favorece os russos, pois inunda toda a área de Nova Kakhovka (ou Novaia Kakhovka, na grafia russa) até a foz do rio Dnieper, que era represado desde 1956 para geração de energia e fornecimento de água para a Crimeia por meio de um canal. A usina no local foi totalmente inundada, de acordo com imagens postadas em redes sociais.

Assim, se os ucranianos planejavam ações ofensivas cruzando o rio, algo que analistas militares duvidavam, não poderão fazê-lo agora ali.

Do lado russo, o ministro da Defesa, Serguei Choigu, disse que o ataque visou liberar forças ucranianas em Kherson para ação em outras áreas. Já o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, disse que o ataque ameaça cortar o suprimento de água da Crimeia, península anexada por Vladimir Putin em 2014 como reação à derrubada de um governo simpático ao Kremlin em Kiev.

Para ele, essa foi a motivação do que chamou de "sabotagem da Ucrânia". Ao menos 16 mil pessoas moram nas margens orientais do Dnieper, o lado retomado por Kiev no final do ano. A capital homônima de Kherson, 30 km a oeste, está sob esvaziamento preventivo também, e o governo local acusa a Rússia de bombardear a cidade durante o processo.

Zelenski reuniu-se emergencialmente com seu conselho de segurança e acusou os russos. "Nesta noite, às 2h50 (20h50 de segunda em Brasília), terroristas russos provocaram uma explosão nas estruturas da Usina Hidrelétrica de Kakhovka. Cerca de 80 localidades estão na zona de inundação", afirmou.

Horas depois, Zelenski se referiu ao rompimento como uma "bomba ambiental de destruição em massa" e disse que promotores ucranianos já entraram em contato com o Tribunal Penal Internacional (TPI) para para "envolver a justiça internacional na investigação da destruição da barragem".

Autoridades ucranianas falam em crime de guerra, baseados no artigo 56 do Protocolo Adicional 1 das Convenções de Genebra, que proibiu a destruição deliberada de barragens em 1977. Ocorre que a Rússia revogou a adesão soviética ao protocolo em 2019, sendo desobrigada a segui-la —noves fora o fato de não ter declarado guerra formalmente ao vizinho. Os EUA também não ratificaram a regra.

Para desgosto de Kiev, os EUA, maior aliado dos ucranianos, não foram assertivos. "Estamos fazendo o melhor que podemos para entender" o que aconteceu, disse o porta-voz do Conselho de Segurança Nacional, John Kirby, na Casa Branca. Ato contínuo, o chefe de gabinete de Zelenski, Andrii Iermak, disse "não entender" que haja dúvidas sobre a autoria, segundo ele, russa.

Kirby ainda disse que o protocolo adicional foi "assinado pelos russos", ignorando a revogação disso e, claro, a posição americana sobre bombardear represas expressa como lícita no Manual das Leis de Guerra do Departamento de Defesa.

O secretário-geral da ONU, António Guterres, não apontou culpados, mas disse que a tragédia é "uma consequência da invasão". Já o secretário-geral da Otan (aliança militar ocidental liderada pelos Estados Unidos), Jens Stoltenberg, chamou o ato de "bárbaro", e o chefe da diplomacia da União Europeia, Josep Borrell, vê a guerra em "outro patamar".

Segundo o governo de ocupação de Kherson, o nível do rio subiu até dez metros, e Nova Kakhovka está sob as águas. O governador Vladimir Saldo diz que a destruição provocada pelo volume de água ao longo da área afetada não será tão grande. "Não é necessária uma retirada de grande escala. Isso não vai impedir as forças russas de protegerem a margem esquerda [ocidental]", afirmou.

Também sob risco está a usina nuclear de Zaporíjia, ocupada pelos russos, que fica 120 km rio acima. A água do reservatório garantia o resfriamento de seus seis reatores, cinco dos quais desligados desde o ano passado.

Segundo os administradores, não há perigo agora, mas se houver necessidade de resfriamento do reator remanescente pode haver problemas —o nível da água já caiu 2,5 metros. "Falta de água para resfriamento por um longo período causaria derretimento de combustível. Mas nossa avaliação atual é de que não há risco imediato", disse o diretor-geral da Agência Internacional de Energia Atômica, Rafael Grossi.

Isso tudo é insondável agora, mas levou a acusações de terrorismo nuclear por parte de Kiev nesta manhã. Zaporíjia tem sido um ponto de tensões, com acusações mútuas de bombardeios e ataques na região, e o argentino Grossi já esteve lá para avaliar os riscos.

A destruição da represa e da usina vinha sendo especulada desde que os russos deixaram a margem oriental do Dnieper para tomar posições defensivas do outro lado do rio, em novembro. De lá para cá, moradores da parte ocidental foram realocados para áreas mais distantes da margem, fortificadas.

Mas há, além da acusação de catástrofe humanitária e do risco nuclear, um problema de fato para a Rússia. Kakhovka, com capacidade de 18 km cúbicos (Itaipu, no Brasil, tem 29 km cúbicos) alimenta o Canal do Norte da Crimeia, estrutura completada em 1976 pelos soviéticos para irrigar a península abaixo.

Em 2014, após a anexação, Kiev represou o canal, dificultando a vida dos moradores da região. Assim que tomaram Kherson, no começo da guerra em 2022, os russos destruíram a obstrução, e o canal voltou a fluir água. Agora, a situação é incerta, embora o Kremlin tenha dito nesta manhã que "medidas foram tomadas" para garantir o funcionamento do ramal.

Seja como for, a ação atinge eventuais planos de Zelenski de operar na região. Ao longo da noite, os russos promoveram diversos ataques com mísseis lançados por bombardeiros Tu-95 contra alvos em Kiev, Kharkiv, Dnipropetrovsk e outras cidades ucranianas. Houve outros ataques ao longo do dia.

Os combates continuam na região de Donetsk. Moscou diz ter repelido ataques probatórios em sua linha de frente, matando 3.700 ucranianos desde o domingo —número negado por Kiev. Nesta terça, Moscou também afirmou que 71 soldados seus morreram, num raríssimo comentário sobre baixas na guerra.

O Ministério da Defesa russo também disse que suas forças estão em controle de uma vila a 3 km de Bakhmut, a contestada cidade que tomaram após meses em maio. Na segunda (5), o líder mercenário Ievguêni Prigojin, que vive às turras com Choigu, havia dito que as forças regulares de Moscou haviam sido expulsas pela contraofensiva do lugarejo.


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