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Evo Morales crê ser dono da política; para nós, ela é do povo, diz Luis Arce à Folha

Por Folha de São Paulo

28/06/2024 21h15 — em
Mundo



LA PAZ, BOLÍVIA (FOLHAPRESS) - Pouco mais de dois dias depois de frear uma tentativa de golpe militar na Bolívia, o presidente Luis Arce aparenta estar calmo. Da Casa Grande do Povo, a sede do Executivo local, ele concede esta entrevista que dá o tom dos desafios nos quais seu país está mergulhado.

Lucho, como é conhecido, expressa insatisfação com seu padrinho político e hoje grande desafeto, Evo Morales. Questionado, afirma que o histórico líder tem tentado boicotar seu governo e crê ser dono da política. Evo quer concorrer para um quarto mandato em 2025, ainda que, constitucionalmente, não possa.

"Para nós, como governo, o verdadeiro dono do instrumento político são as organizações sociais que o fundaram. Mas para ele, não: ele é o dono e ele quer construir com base em sua figura o instrumento", diz.

Ele desconversa quando questionado se pretende concorrer à reeleição -seus aliados próximos dizem que o fará. Sobre o lítio, joia energética no subsolo boliviano, afirma que aprendeu uma lição com o passado regado às riquezas, hoje escassas, do gás: não pode ser a única riqueza.

"O governo nacional está empenhado em diversificar nossa economia. Durante muitos anos foi exclusivamente dependente do preço do gás. Conosco não vai ser assim", afirma. Vale lembrar que Arce foi ministro da Economia de Evo por mais de uma década.

Diz ainda que a industrialização do país desperta a ira de inimigos domésticos e internacionais, mas não esclarece a quem se refere.

PERGUNTA - O presidente Lula virá a Santa Cruz no próximo dia 9. Lula pode ter algum papel para ajudar o governo do sr. com a crise política, na disputa com Evo, ou na econômica, com o gás?

LUIS ARCE - O companheiro Lula é uma pessoa muito influente na situação. O que vamos falar é de uma agenda que temos em infraestrutura, investimentos, comércio, várias temáticas nas quais ambos os países queremos ganhar. Não está incorporada alguma agenda política, mas seguramente vamos manter, como sempre fazemos quando nos vemos com ele, uma atualização do que está acontecendo no Brasil, o que está acontecendo na Bolívia. Ele me ligou por esse tema do golpe de Estado fracassado.

P. - Gostaria de falar sobre Evo, personagem-chave na história do país. O que o sr. pensa sobre a tentativa de Evo de concorrer novamente nas eleições do ano que vem, mesmo que não possa? O que o sr. acha do populismo evista? Há um dano para a democracia?

LA - O fato de ele desejar participar é uma decisão dele. Fundamentalmente a principal diferença que temos é quem é proprietário do instrumento da política. Para nós, como governo, o verdadeiro dono do instrumento político são as organizações sociais que o fundaram. Mas para ele, não: ele é o dono e ele quer construir com base em sua figura o instrumento.

Essa é nossa principal diferença, que ainda não está resolvida e que gera, evidentemente, problemas políticos, gerou-nos um boicote na Assembleia Legislativa por parte de todo o evismo contra o governo. Ele está nesse papel de se opor ao que estamos fazendo como governo. O principal problema é este: quem vai levar as rédeas do instrumento político do MAS nas futuras eleições? Esse é o principal problema.

P. - Ou seja, há um dano para a democracia devido às atitudes de Evo?

LA - Bem, é um assunto nosso, é um assunto interno...

P. - Do partido, o sr. quer dizer?

LA - Sim. Não é um assunto nacional, porque há outros partidos que estão em disputa que vão participar certamente das eleições. Portanto, é um dano à democracia? Não, o dano à democracia são essas tentativas fracassadas de golpe de Estado.

P. - O sr. vai concorrer às eleições do ano que vem?

LA - Eu não decido isso. Quem decide são as próprias organizações sociais, que são, em minha opinião, as que devem decidir quem são seus candidatos.

P. - Mas o sr. tem vontade?

LA - Repito mais uma vez, estou fazendo o que as organizações sociais vão dizer no momento. Tenho um mandato a cumprir até o próximo ano e vou cumprir. A partir daí, esperamos a decisão. Vamos apoiar tudo o que os donos do instrumento político decidirem.

P. - Queria falar sobre o tema do gás. Temos o debate sobre o gás da região de Vaca Muerta na Argentina e de como levar o gás para o Brasil, exportando-o. Como estão essas negociações? Isso poderia ajudar a economia da Bolívia?

LA - É um tema que está na agenda. É um tema que vamos discutir, com certeza.

P. - Ainda não há um plano ou uma resposta?

LA - A reunião bilateral, entendo, é justamente para discutir esses temas.

P. - Qual é o papel do lítio para o futuro da economia boliviana?

LA - O governo nacional está empenhado em diversificar nossa economia. Durante muitos anos foi exclusivamente dependente do preço do gás. Conosco não vai ser assim. Entramos em um processo de diversificação. Por isso apontamos não apenas para o lítio. Temos minerais, terra, ferro, uma produção agropecuária importante, temos um enorme potencial turístico. Estamos focados em fortalecer todas essas outras áreas para não dependermos tanto do gás.

Continuamos investindo em exploração como nunca em nosso país para obter mais reservas de gás. Mas o lítio para nós é um desses elementos diversificadores de nossa economia. Queremos industrializar, estamos avançando na industrialização por conta própria, mas também convidamos empresas de renome para industrializar o lítio aqui na Bolívia conosco.

P. - Portanto, o lítio não pode ser a única coisa como o gás foi por um tempo. Aprenderam isso com o tema do gás?

LA - Sim. Parte do problema econômico que enfrentamos agora é porque não foram feitos investimentos oportunos na exploração de gás, e também porque muitos dos recursos que poderiam estar gerando mais não foram investidos adequadamente.

P. - Falei com muitos cidadãos que estão dizendo que os preços subiram, que está mais caro comprar tudo. Qual é o plano do governo para isso? E o sr. acha que a tentativa de golpe, que o governo impediu, pode gerar mais popularidade para o governo?

LA - Está claro que somos a economia mais estável da região. Depois do Equador, somos a economia mais estável. Você não encontrará preços mais baratos do que em nosso país. Estamos cuidando disso e implementando várias ações e políticas para continuarmos sendo o país mais estável. E estamos conseguindo. Portanto, a estabilidade é uma prioridade máxima para nós. Não vamos perdê-la.

P. - Sobre a popularidade. A direita e os evistas estão preocupados com ganharmos popularidade. Nós não. Acreditamos claramente que ninguém pode ganhar popularidade com um golpe de Estado. Quem pensaria isso?

LA - O que queremos é fazer as coisas corretamente.

E sempre que percebemos que estamos avançando na industrialização de nossos recursos naturais, na diversificação econômica com soberania, vemos que despertamos apetites externos e internos. Inimigos internacionais e inimigos nacionais. Eles não querem que avancemos. Não querem que mostremos os resultados de tudo o que estamos fazendo. Não querem que avancemos nessa direção porque, é claro, devem pensar que vamos prejudicar seus interesses.

P. - Quem são os inimigos internacionais?

LA - Aquela era a última pergunta... [diz o presidente, ao sair da sala rumo a outra conversa].

Raio-x | Luis Arce, 60

Nascido na capital La Paz e formado em economia, foi ministro da área durante os governos de Evo Morales na Bolívia, quando ficou conhecido como um dos arquitetos do vigor econômico que ganhou o país nos anos de grande exportação de gás natural. Foi eleito presidente em 2020 com 55,2% dos votos.


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