Idlib indica como pode ser o futuro da Síria sob governo rebelde
IDLIB, ALEPPO E HOMS, SÍRIA (FOLHAPRESS) - Enquanto milhares de sírios ainda festejam nas ruas, muitos se perguntam até quando vai durar a fase "paz e amor" de Ahmed Al-Sharaa --ele, que antes se identificava como Abu Mohammed al-Jolani, é o líder da milícia Hayat Tahrir Al-Sham (HTS), que tomou o poder na Síria em 8 de dezembro.
Sharaa era membro da Al Qaeda até 2016, quando rompeu com a facção terrorista. À frente da HTS, tem tentado se mostrar um moderado.
Em pronunciamentos, disse que faria um governo para todos os sírios e que respeitaria a cultura e as religiões do país. Em entrevistas, disse que não pretende impor a sharia (lei islâmica). Reuniu-se com líderes das comunidades cristã e drusa. Determinou que as pessoas não pusessem fotos suas em locais públicos, para não emular o culto à personalidade que marcou o regime de Bashar e de seu pai, Hafez.
Sharaa tem ressaltado a necessidade de reconstruir as instituições e combater a corrupção. Além disso, anunciou que serão realizadas eleições em março de 2025.
Apesar de todas essas sinalizações conciliadoras, muitos temem que o novo governo vá marginalizar minorias religiosas e limitar o papel das mulheres na sociedade.
A Folha esteve em Idlib, província de 4,5 milhões de habitantes controlada pela HTS desde 2017. Lá, há indicações do que se pode esperar de um governo Sharaa.
Duas semanas atrás, toda essa região era alvo de constantes bombardeios aéreos, e a destruição está em toda parte. Mas a HTS está reconstruindo prédios, divisões do governo e recapeando estradas. Não há lixo acumulado nas ruas, e diferentemente do que se vê na maioria dos locais que estavam sob comando de Assad, lá há guardas de trânsito.
Na praça principal da cidade, um outdoor celebra a queda do ditador e promete uma Síria "para todos os sírios", ao lado da bandeira dos rebeldes.
Atrás dessa fachada, no entanto, há um governo conservador islâmico, como boa parte da população dessa região. Nas universidades, há separação de gênero. Não há venda de bebidas alcoólicas. Vigora uma Justiça mista islâmica e civil. Em relação ao fumo, o governo faz vista grossa.
Apesar de não haver uma exigência oficial, todas as mulheres em Idlib usavam hijab, o véu islâmico, ou niqab, aquele que deixa apenas os olhos de fora. No hospital visitado pela reportagem, só enfermeiras trabalhavam na área restrita a mulheres, e todas trajavam o niqab. Nos sete anos de governo da HTS em Idlib, nenhuma mulher ocupou algum cargo de autoridade.
O grupo tem amplo apoio da população local. "Eles fizeram uma estrada melhor, agora leva só uma hora para chegar a Aleppo; a comida está mais barata e as cidades, mais seguras", disse Tarik Takika em sua casa no vilarejo de Mohambeel, no interior da província.
Um de seus quatro filhos, Abu Hamze, é combatente da HTS e ficou ferido recentemente por estilhaços de uma bomba das forças de Assad.
Takika abandonou seu emprego como servidor público em Aleppo há oito anos. Sunita e oriundo de Idlib, tinha medo de ser preso pelo regime. Agora, tem esperança em recuperar a vaga.
O local onde vive, Mohambeel, foi atingido por inúmeros ataques aéreos, e centenas de pessoas morreram. "De 2015 a 2022, não podíamos acender nenhuma luz na casa, porque podiam acertar a gente", diz Takika. A shabiha, como eles chamam as forças de Assad, matou um de seus irmãos e um sobrinho.
Com a chegada da HTS, as escolas da vila passaram a ser separadas para meninos e meninas, e as mulheres adotaram o niqab. Na casa de Takika, quando as mulheres se reúnem em um dos cômodos, os homens ficam no outro.
As duas filhas dele usam o niqab. Safa, 18, está noiva. Marwa, 23, é casada e tem um filho de 9.
Um integrante da HTS disse à Folha que o objetivo do grupo não é impor o uso do véu a mulheres no resto da Síria. "Mas as mulheres têm que se vestir de forma discreta, não devem usar maquiagem, shorts, ir à praia de biquíni, nada disso. Essa não é nossa cultura", disse Khaled, 39.
Na quinta-feira (19), centenas de pessoas protestaram na praça Umayyad, a principal de Damasco, pedindo um governo laico. "Abaixo o governo religioso", "Deus é para a religião, e o país é para todos", "Queremos democracia, não um estado religioso", diziam alguns dos cartazes.
O regime de Assad, que deixou um rastro de atrocidades, era laico. Mulheres chegaram a ocupar cerca de 30% dos cargos em ministérios e legislaturas. Os alauitas, vertente muçulmana minoritária (cerca de 10%) à qual pertence Assad, são os mais preocupados com o futuro do país. Na Síria, 70% são sunitas.
Reema, 35, uma alauíta de Homs, não tem saído de casa por medo de retaliações. "Será que vou ser obrigada a usar hijab, não vou poder ter amigos homens porque é haram (proibido pela lei islâmica) e não vou poder ter um emprego no setor público?", indaga. Ela mostra a foto de seu sobrinho, que morreu aos 9 anos vítima de um atentado de extremistas islâmicos em sua cidade, e começa a chorar.
"Depois de 13 anos de guerra, será que vamos continuar com medo, agora de um governo islamita?" Sua mãe, Sanaa, é secretária em uma escola de balé. O estabelecimento fechou as portas desde que a HTS tomou o poder, por receio de violar regulações islâmicas. "Não temos para quem perguntar, o prefeito fugiu, e ainda não tem ninguém da HTS no lugar", diz sua mãe.
Nas universidades, as orações muçulmanas foram incorporadas. Em bairros alauitas em Damasco, algumas mulheres passaram a usar o hijab, por receio.
A primeira entrevista do porta-voz do governo, Obaida Arnaout, aumentou os temores quanto ao tema. Indagado sobre a possibilidade de ter mulheres em ministérios, ele declarou: "Mulheres são importantes e respeitadas, mas precisam ter funções que possam cumprir."
Segundo Arnaout, uma mulher não deveria, por exemplo, ser ministra da Defesa, porque isso não se alinha com "a natureza e constituição biológica" feminina e ela não conseguiria "cumprir essa função do mesmo jeito que um homem".
Na semana passada, uma jovem pediu a Sharaa que tirasse uma foto ao seu lado. Ele indicou, por gestos, que ela deveria cobrir os cabelos com o hijab.
"Eu quero que as fotos em que eu apareço sejam tiradas da maneira que me convenha. Isso é diferente de baixar uma lei que se aplica a todo país. Mas existe uma cultura neste país, e a lei precisa reconhecê-la", disse Sharaa em entrevista à BBC.
Questionado pela Folha sobre a ausência de mulheres no governo, o gerente do Ministério de Mídia de Idlib, Abdo Rahman, desconversou. "Mas ainda pode haver mulheres no governo, por que não?"
Na sexta-feira (20), em gesto calculado para acalmar os ânimos, a administração nomeou a primeira mulher: Aisha Al-Dabs, que atuará no escritório de Assuntos Femininos do Departamento de Assuntos Políticos.
Vários sírios afirmaram à reportagem temer que a moderação de Sharaa tenha prazo de validade e só valha até que países ocidentais retirem as sanções que sufocam o país. Quando a Síria sair do foco das atenções, receiam eles, o líder começará a impor a sharia. Outros defendem que se dê um voto de confiança ao novo governo.
A HTS ainda é considerada uma organização terrorista por vários países, como Estados Unidos e Reino Unido. Inúmeros diplomatas estrangeiros, inclusive americanos, estiveram na Síria em encontros com a organização desde a queda de Assad. Todos afirmaram que podem considerar a retirada das sanções desde que se protejam as minorias e haja um governo inclusivo. O líder islamita está em campanha aberta para convencer o mundo de que não pretende criar um Afeganistão no Oriente Médio.
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