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Jimmy Carter pressionou Geisel contra ditadura no Brasil, diz biógrafo

Por Folha de São Paulo

29/12/2024 18h00 — em
Mundo



NOVA YORK, EUA (FOLHAPRESS) - Seria Jimmy Carter o mais subestimado presidente americano? O democrata, que governou os EUA de 1977 a 1981 e morreu neste domingo (29), aos 100 anos, passou as últimas quatro décadas perseguido por clichês, como a fama de bom ex-presidente; de ser o trapalhão responsável pelo infame fracasso no resgate dos 52 reféns americanos em Teerã, em 1980; de ser um jeca ingênuo que pedia introspecção e sacrifício aos americanos.

O anúncio, em fevereiro de 2023, de que Carter estava recebendo cuidados paliativos em casa, provocou uma espécie de exame de consciência coletivo sobre o tom sarcástico que marcou a avaliação da breve era Carter.

No dia 18 de março, uma revelação publicada pelo New York Times acrescentou credibilidade à teoria de que William Casey, diretor da campanha do republicano Ronald Reagan e futuro diretor da CIA, conspirou com o aiatolá Khomeini para prolongar o cativeiro dos reféns americanos em Teerã até depois da eleição. Reagan derrotou Carter com folga, e é impossível estimar se a solução do drama dos reféns teria virado a eleição.

Um dos mais conhecidos biógrafos de Carter é Jonathan Alter, visto como um raro autor que se aproximou do político da Geórgia, notório por ser abrupto em contatos pessoais. Alter publicou "His Very Best: Jimmy Carter, a Life" (o melhor dele: Jimmy Carter, uma vida) em 2020.

O título se refere a um momento decisivo para o então recém-graduado pela Academia Naval, quando um almirante que viria a ser seu mentor cobrou do aspirante se ele havia se esforçado o máximo nos estudos. Carter fez uma pausa e não mentiu. "Não, senhor, nem sempre."

À reportagem Alter recorda Carter como mau político, mas prolífico condutor de uma agenda doméstica e de iniciativas de política externa, como os Acordos de Camp David, em 1979, que garantiram uma paz duradoura entre Israel e Egito, à época o único país com um Exército capaz de representar uma ameaça existencial a Israel. Também relata como Carter foi hábil para pressionar a ditadura brasileira, à época sob comando de Ernesto Geisel (1974-1979), a libertar presos políticos.

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PERGUNTA - Seu livro rebate o mito do bom ex-presidente. Por que o único mandato de Jimmy Carter não teve a avaliação merecida?

JONATHAN ALTER - Ele foi esmagado por Ronald Reagan, quando tentou se reeleger, em 1980. Saiu se sentindo um derrotado, virou piada de comediantes. Os americanos não gostam de perdedores. Ele também não era colocado em contexto pela imprensa em Washington com quem não se dava bem, era irritadiço. E, ao contrário de George Bush pai, mais amistoso e outro que não se reelegeu, não tinha uma rede de amigos para polir sua imagem. Ele era também um saco de pancadas para a direita.

Saiu do governo humilhado pelo aiatolá Khomeini, que libertou os reféns da embaixada americana menos de um minuto depois da posse de Ronald Reagan, em janeiro de 1981. Mas Carter tinha negociado a soltura. Ele foi ofuscado por Reagan, o comunicador charmoso. Em 1979, durante a disparada da inflação, nomeou Paul Volcker para o Federal Reserve (banco central dos EUA). Volcker aumentou as taxas de juros para 15% ao ano, provocou uma recessão e deu sua contribuição para a derrota do presidente. Volcker conseguiu domar a inflação, e Reagan colheu os resultados no segundo ano de governo, vencendo a reeleição em 1984 de lavada. Carter foi um fracassado em política e um sucesso de visão.

P - Quais os exemplos do presidente visionário?

JA - Carter assinou mais legislação do que qualquer presidente desde Lyndon Johnson (1963-1969). Implementou normas éticas no serviço público. Retirou impedimentos ao transporte aéreo e ferroviário que impulsionaram o comércio. Criou dois ministérios, de Educação e Energia. Lembro que Carter enfrentou a crise do petróleo dos anos 1970.

P - Como os EUA teriam enfrentado a mudança climática se Carter tivesse conseguido se reeleger, em 1980?

JA - A história teria tomado outro rumo. Ele foi pioneiro em reconhecer o aquecimento do planeta, o primeiro chefe de Estado a instalar painéis solares na Casa Branca, em 1977. Ronald Regan mandou removê-los da sede do Executivo. Pouco antes de deixar o governo, Carter publicou um relatório defendendo a redução de emissões de carbono na atmosfera que só foram propostas pelo Acordo de Paris, 45 anos depois. Carter introduziu regras de eficiência de combustíveis para veículos. Promoveu a primeira limpeza de depósitos de lixo tóxico. Deu incentivos para conservação às empresas de energia. Eram medidas visionárias, mas típicas do que seus críticos consideravam microgestão e sinal de fraqueza.

P - Carter ganhou o Nobel da Paz em 2002 por décadas de esforços para solucionar conflitos. Como ele vai ser mais lembrado em diplomacia, além do sucesso nos Acordos de Camp David?

JA - Um dos episódios menos lembrados, em 1977, foram os dois acordos de devolução que garantiram neutralidade no Canal do Panamá; passaram por pouco pelo Senado e preveniram o começo de uma guerra na América Central. Richard Nixon [1969-1974] abriu a porta para uma aproximação com os chineses, mas foi Jimmy Carter quem estabeleceu relações diplomáticas, em 1978, quando a China ainda tinha uma economia do tamanho de países do Norte da África. Esta aproximação definiu a economia mundial globalizada do século 21. Carter me disse que acredita ser este seu legado mais duradouro.

P - E a defesa dos direitos humanos que criou tensão com o Brasil da ditadura militar?

JA - Tem razão quem vê aspectos de hipocrisia, porque Carter acomodou ditadores. Mas, até então, nenhum chefe de Estado americano tinha proposto como agenda levar em conta como outros países tratam seus cidadãos. Entrevistei vários dissidentes latino-americanos, e o tom geral era de gratidão por ele destacar e denunciar violações.

No caso do Brasil, ele tinha claro interesse em impedir que, pelo acordo com a Alemanha, o Brasil pudesse enriquecer urânio e processar plutônio. Ele foi hábil com o general Ernesto Geisel [1974-1979], com quem tinha uma relação fria. Deixou a subsecretária de Estado Patricia Derian aplicar pressão sobre Geisel para libertar presos políticos. A prioridade de Carter era impedir a proliferação nuclear na América Latina. Ele exerceu forte pressão sobre Geisel, e os americanos não têm a menor ideia disso.

P - Como Jimmy Carter inventou a pós-Presidência?

JA - Antes de Carter, a maioria dos presidentes ia jogar golfe, escrever memórias e faturar alto com palestras para empresários. Ele criou, com a mulher, Rosalynn, o Centro Carter, uma fundação que promove paz, direitos humanos e trabalhou pela erradicação de doenças na África e América Latina. O Centro cooperou com o monitoramento de cem eleições.

Quando Daniel Ortega perdeu a eleição para Violeta Chamorro na Nicarágua, em 1990, Carter passou boa parte da noite o convencendo a não considerar um golpe. Disse a ele que também tinha perdido uma reeleição e que ele voltaria ao poder mais tarde. E, infelizmente, Ortega voltou.

P - Uma vez, Vernon Walters, o ex-adido militar dos EUA em Brasília associado ao golpe de 1964, descreveu Carter como um simplório que insistia em carregar a própria pasta. O quanto a imprensa contribuiu para propagar esta imagem?

JA - Muito. Jimmy Carter foi eleito como o antídoto para a corrupção de Watergate, e Walters era cria de Nixon. A imagem da pasta era para ridicularizar o esforço de "desimperializar" a Presidência. Mas o preconceito contra o sulista fazendeiro de amendoim era o tom.

A direita atacou Carter por pedir aos americanos para fazer sacrifícios no famoso Discurso da Malaise (mal-estar) de 1979. Foi o ano da revolução iraniana, da invasão soviética no Afeganistão, da disparada da inflação e longas filas nos postos de gasolina. Carter nunca pronunciou a palavra "mal-estar", mas, num tom confessional, diagnosticou uma crise de confiança. Somos uma nação de consumidores, queríamos ir às compras, não conservar ou poupar. Depois de Carter, nenhum outro presidente tentou falar assim com os americanos.


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