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Esquerda discute espaço para pautas identitárias e calcula riscos após derrotas nas urnas

Por Folha de São Paulo

29/12/2024 7h45 — em
Política



SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Após o debate sobre as chamadas pautas identitárias atravessar os últimos ciclos eleitorais, a esquerda no Brasil busca enfrentar o tema numa tentativa de afastar contradições e alinhar discursos para evitar que a ligação com bandeiras segmentadas vire bode expiatório de derrotas.

A dimensão das bandeiras identitárias no PSOL, sobretudo nos representantes do Legislativo, foi citada por setores do PT como uma das causas do fracasso de Guilherme Boulos na disputa à Prefeitura de São Paulo, sob o argumento de que afugentam setores mais amplos do eleitorado.

A avaliação hoje é de que é preciso reafirmar apoio a políticas de direitos específicos a uma parcela da população, como mulheres, negros e comunidade LGBTQIA+, mas sem que essa atenção signifique um abandono de causas clássicas da esquerda, como luta de classes e políticas públicas universais.

O tema se transformou em questão espinhosa para o chamado campo progressista, no momento em que conservadores avançam no diálogo com estratos sociais que já estiveram mais próximos da esquerda ou que têm consolidado uma rejeição profunda a ela, como é o caso dos evangélicos.

A crítica à centralidade que as pautas individuais têm adquirido se sustenta no argumento de que a extrema direita -ou, no caso brasileiro, o bolsonarismo ideológico- usa tais reivindicações como espantalhos do debate público.

O caso do aborto é emblemático, com líderes à direita distorcendo ou hiperdimensionando pontos da discussão para atacar e descredibilizar o lado rival.

Para a presidente nacional do PSOL, Paula Coradi, "não existe projeto de esquerda que não passe por mulheres, negros e indígenas, compreendendo as lutas por liberdade e diversidade". Ela diz que recuar nessa seara para não alimentar a direita pode gerar regressão de direitos.

"Para nós do PSOL, essas ditas pautas identitárias não devem ser lidas dessa forma. A classe trabalhadora tem gênero, raça e formas de existir, de amar e de se relacionar com o mundo. Ela é atravessada por esses marcadores. Sem falar que mulheres e negros são majoritários", afirma.

Paula aponta o dedo para "a velha esquerda" ao defender que o campo pode, sim, "combinar as lutas históricas por justiça social e reforma agrária com as lutas do nosso tempo". Ela diz que as reivindicações que agora se impõem foram negligenciadas por muitos anos.

O PSOL lançou 210 candidatos a prefeito em 2024 no país e não elegeu nenhum.

Dias após perder para Ricardo Nunes (MDB), Boulos disse ao fim de um evento com simpatizantes que "tem que tomar cuidado" quando o assunto são as pautas identitárias.

Ele afirmou que a esquerda "não pode abandonar de forma nenhuma" a defesa de direitos de grupos minorizados. "Isso é uma coisa. Outra coisa é transformar isso no centro da disputa política, que é o que a extrema direita faz no mundo inteiro. Nessa cilada a gente não pode cair", declarou.

A presidente do partido classifica como descabida a associação entre a derrota do correligionário e a temática identitária.

Segundo Paula, o resultado foi fruto do "uso desenfreado da máquina pública" em favor de Nunes e da presença avassaladora do influenciador Pablo Marçal (PRTB), que fortaleceu o prefeito ao posicioná-lo, por comparação, como "um sujeito viável e aceitável".

O deputado federal Orlando Silva (PC do B-SP), que atuou na campanha de Boulos e milita na causa antirracista -como candidato a prefeito de São Paulo em 2020 usou o slogan "não vote nulo, não vote em branco, vote no preto"-, avalia como "falsa contradição" a escolha entre lutas gerais e específicas.

"As políticas universais têm que incluir os diversos segmentos, que têm outras dimensões de vulnerabilidade para além da situação econômica. E, da mesma forma, a luta especifica não pode ser travada abstraindo a geral. Temos de ter clareza do que é inegociável para nós", diz.

Orlando também tem a visão de que frear a demanda identitária "alegando que eleitoralmente é ruim ou não é conveniente" pode motivar acusações de oportunismo eleitoral e perda de confiança. "Recuar numa disputa de ideias pode ser fatal."

O deputado enxerga as críticas ao chamado identitarismo como tentativa de "desqualificar trabalhos importantes" e aponta sua origem na academia e na elite política. "É uma crítica feita por gente estabelecida, quase sempre bem posicionada. Nunca vi um líder comunitário levantando esses questionamentos."

As pautas identitárias emergiram num contexto em que grupos historicamente excluídos impuseram suas necessidades, "recusando-se a colocá-las como questões menores, subalternas às questões de classe", afirma Luis Felipe Miguel, professor de ciência política da UnB (Universidade de Brasília).

Outro componente, diz ele, foi o esgotamento dos modelos tradicionais da esquerda classista, o que levou o espectro a marcar sua diferença abraçando as causas de grupos oprimidos. Isso, contudo, não significou contestação ao sistema neoliberal, limitando-se a "ajustes cosméticos".

Em paralelo, "a nova extrema direita percebeu que tinha como explorar os ressentimentos difusos" gerados por discursos pró-diversidade que soavam hegemônicos, segundo o pesquisador.

"O identitarismo é mais sintoma do que causa da crise da esquerda. É a válvula de escape de uma esquerda que não apresenta mais um projeto de transformação anticapitalista da sociedade", afirma.

O docente acredita que, no aspecto eleitoral, tendem a se beneficiar mais das pautas identitárias candidatos a cadeiras no Legislativo. Ainda assim, a votação fica restrita a eleitores já com inclinação à esquerda. No caso de cargos majoritários, o discurso espanta as grandes parcelas do eleitorado, diz ele.

Miguel vê, no entanto, surgir hoje uma reação a essa linha de atuação dentro da própria esquerda.

"As tentativas de silenciamento das críticas, na base de carteiradas de 'lugar de fala', já encontram resistência. Não cola mais o discurso de vitimização que tenta fazer com que qualquer discordância seja automaticamente definida como recusa da importância das agendas de gênero ou racial", comenta.


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