Definição do que é uma espécie ainda divide biólogos
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Não há dúvidas de que galinhas e pinguins são duas espécies de aves distintas. Ou que um pé de milho e uma roseira são plantas diferentes. E até mesmo chimpanzés e nós, humanos, constituímos duas espécies distintas, embora biologicamente próximas.
Isso porque essas espécies evoluíram de um ancestral comum e se diferenciaram no tempo, acumulando mudanças genéticas expressas tanto na forma morfológica quanto nos hábitos ecológicos de cada uma, tornando-as únicas. No caso dos humanos e chimpanzés, o ancestral comum mais recente viveu há seis de milhões de anos em algum lugar na África, de onde se originou toda a diversidade de primatas hominídeos atual e extinta.
Mas e quando essa separação ocorreu há bem menos tempo em populações sem características suficientes que permitam uma diferenciação a olho nu? Como os cientistas definem o que constitui duas espécies distintas?
Para os cientistas, a dificuldade reside em encontrar características diagnósticas robustas, seja no nível morfológico, genético ou comportamental, que justifiquem a separação taxonômica dessas populações em espécies distintas.
"A raiz do problema da conceituação de espécie é que a evolução gera descontinuidades na natureza, e são essas descontinuidades que são identificadas por meio de caracteres diagnósticos morfológicos, ecológicos etc. e, quanto mais perto do evento de especiação [processo de origem dessas espécies], mais confusa fica a separação entre elas", explica o mastozoólogo e professor titular do departamento de genética e biologia evolutiva da USP Gabriel Marroig.
Quando duas populações divergiram há pouco tempo, as variações acumuladas entre elas podem ser mínimas. "Em teoria, um ou dois genes já são suficientes para separar uma espécie da outra, mas essa pode ser uma estimativa grosseira se você olhar apenas para o gene e não para o todo daquela espécie, porque no futuro, se elas voltarem a trocar genes e se misturarem, a separação não ocorreu", afirma.
Em contraste, linhagens evolutivas mais antigas oferecem exemplos muito mais claros de diferenciação como, por exemplo, o chimpanzé e o ser humano.
"Embora eles sejam muito parecidos, tanto do ponto de vista genético quanto morfológico, a separação [ou seu ancestral comum] já está lá atrás, então não há mais a confusão. Mas existem inúmeras linhagens que podem voltar atrás, em que você pega o processo ainda acontecendo, e aí como essa história é contada depende do que cada pesquisador julga ser relevante ou não", diz o docente.
Essas separações recentes colocam os pesquisadores diante de "zonas cinzentas" evolutivas.
Claudia Russo, professora titular do Laboratório de Biologia e Genômica Evolutiva e coordenadora do curso de pós-graduação em genética da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), explica que a ideia de diferenciar os organismos em "caixinhas" pode trazer problemas quando falamos de organismos em processo de especiação, uma vez que a transformação não é imediata, é contínua.
Ao longo do tempo, descendentes de uma população que acumulam mudanças vão ser tão distantes das demais ao seu redor que não será mais possível reproduzir. Barreiras geográficas como um rio ou uma montanha ou reprodutivas incompatibilidade morfológica, comportamento impedem o cruzamento entre as populações, e aí não há mais troca de genes e ocorre a especiação, afirma Russo.
Muito do que foi descrito no passado em termos de especiação foi com base também em organismos que praticam reprodução sexuada, isto é, quando há a troca de genes entre dois indivíduos do sexo oposto.
"Buscamos encaixar essa dicotomia em todos os organismos vivos para determinar o número de espécies conhecidas, e é aí que complica, porque embora possa ser simples lidar, por exemplo, com mamíferos, com outros organismos, como bactérias, pode ser mais complicado, e aí essas definições não são tão claras", explica a pesquisadora.
Recentemente, novas ferramentas tecnológicas, como análises genéticas de alta resolução e estudos ecológicos detalhados, têm permitido aos biólogos estudar mais de perto os processos de especiação responsáveis pela formação de diferentes espécies.
Jeff Streicher, curador sênior da Coleção de Anfíbios e Répteis do Museu de História Natural de Londres, lembra da importância das árvores genealógicas moleculares para a identificação de novas espécies. "Um exemplo é a diversidade recente de espécies de anfíbios no Brasil que, até a última década, muitos herpetólogos consideravam poucas dezenas de espécies e, agora, com novas ferramentas moleculares, foi possível verificar a existência de diferentes espécies e compreender os padrões de distribuição delas."
A construção de árvores genealógicas chamadas de filogenias busca entender as relações de parentesco entre as espécies. No passado, e para a grande maioria das espécies fósseis, essas relações foram construídas com base em caracteres morfológicos, isto é, diferenças anatômicas entre visíveis entre elas.
No caso das filogenias moleculares, os cientistas podem usar alguns poucos genes como marcadores principalmente aqueles conhecidos por serem mais conservados entre os grupos ou o sequenciamento de grandes frações do genoma para obter suas filogenias. "Para um determinado marcador, se eu sei que a variação intraespecífica vai até 0,2% de diferença, a partir daí é provável que seja uma espécie nova", diz Russo.
"Mas há hoje, também, uma abordagem mais integrativa, onde você pode ter um conjunto de dados, alguns formados por caracteres genéticos, outros morfológicos, outros ainda ecológicos, e você busca identificar a correspondência entre eles em toda aquela diversidade", diz Streicher.
Independentemente da ferramenta escolhida, o objetivo aqui não é apenas designar novas espécies em uma ação meramente descritiva, mas buscar se aproximar cada vez mais da história evolutiva daquele grupo. Com cerca de apenas 10% de toda a biodiversidade existente conhecida e um ritmo de extinção cada vez mais acelerado, causado por ação humana e alterações climáticas no ambiente, os cientistas concordam que estão em uma corrida contra o tempo no processo de descrição das espécies.
"Não podemos perder a perspectiva de que aquele é um fenômeno real que você quer descrever. Na ciência, é fundamental sempre procurar se aproximar do mundo real da melhor maneira possível", completa Marroig, da USP.
ASSUNTOS: Variedades