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Falta de absorventes, higiene e infraestrutura intensifica pobreza menstrual no cárcere

Por Folha de São Paulo

16/03/2022 6h36 — em
Variedades



SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Juliana (nome fictício*) tinha acabado de ser presa por tráfico de drogas no 89º Distrito Policial de São Paulo quando percebeu sua calça manchada de sangue. Era menstruação. Pediu absorventes para um agente, mas o local não disponibilizava o item para presas. A saída foi pegar emprestada a calcinha usada por uma companheira da cela ao lado.

Naquele momento, ela ainda não sabia que ficaria nove meses presa até que tivesse seu regime flexibilizado. Dali, foi transferida para o Centro de Detenção Provisória de Franco da Rocha, onde usou a mesma roupa íntima por 90 dias.

O local distribuiu cerca de 13 pacotes de absorventes por presa em 2020, segundo a Defensoria Pública de São Paulo. A recomendação é de 24. Ela conta que eram tão finos, que muitas presas precisavam emendar para que o sangue não vazasse nas roupas.

Hoje, ela cumpre prisão domiciliar, mas não consegue se esquecer das violações de direitos que viveu na prisão.

"Tudo o que eu faço e vou fazer me lembra a desumanidade que eu vivi ali dentro precisando de um atendimento médico e não ter, falta de alimentação, as humilhações. Eu não consigo esquecer ainda nada", diz.

A falta de absorventes, higiene e de infraestrutura sanitária nas prisões intensifica a pobreza menstrual no cárcere brasileiro. O termo é entendido como a falta de acesso de pessoas que menstruam a itens de higiene menstrual, informação para lidar com o período, ou ausência de saneamento básico adequado.

O Brasil possui a terceira maior população carcerária do mundo, segundo os dados do World Prison Brief. De acordo com o Depen (Departamento Penitenciário Nacional), do Ministério da Justiça, são 673 mil pessoas em unidades prisionais brasileiras, sendo que cerca de 30,2 mil estão reclusas em unidades prisionais femininas.

Só no estado de São Paulo são cerca de 8,9 mil mulheres e homens trans privados de liberdade, de acordo com a SAP (Secretaria de Administração Penitenciária). Um ofício enviado para a SAP, feito pelo Nesc (Núcleo de Situação Carcerária) da Defensoria Pública de São Paulo, fala da distribuição de absorventes em 21 unidades prisionais femininas do estado. Destas, apenas cinco distribuíram a quantidade indicada no ano de 2020, de acordo com o documento elaborado em 2021. O grupo afirma que os números foram fornecidos pelas próprias unidades.

Os defensores estipulam uma média de dois pacotes por mês, ou seja, 24 por ano. Isso não significa que os produtos estão adequados à realidade menstrual da pessoa presa, uma vez que as encarceradas costumam reclamar da qualidade dos absorventes –são pequenos ou finos, mesmo para quem tem grande fluxo menstrual.

Nas unidades com os piores índices, como o Centro de Ressocialização Feminino de São José dos Campos, são nove pacotes no ano. Já o Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Professor André Teixeira Lima 1, em Franco da Rocha, distribuiu cinco.

Coordenador no Nesc, Leonardo Biagioni explica que unidades prisionais contam com as famílias enviando absorventes e, por isso, não distribuem em quantidade suficiente para as pessoas presas. Mas na verdade, diz ele, mesmo se os reeducandos não recebessem, as prisões não teriam em quantidade suficiente para sua população carcerária.

"É um direito que deveria ser fornecido pelo estado e não passado para os familiares que são pessoas infelizmente de más condições financeiras. Eles já têm gastos muito grandes devido o próprio familiar estar preso e não poder ajudar nas economias domésticas", explica Biagioni.

Em nota, a SAP declara que números fornecidos pela defensoria estão muito abaixo da realidade do sistema prisional paulista. Esclarece que, em média, cada reeducanda recebe dois pacotes por mês, podendo solicitar mais se necessário

Batia Jello Shinzato ficou presa de 2008 a 2010. Ela passou pela Penitenciária Feminina da Capital e pelo CDP de Franco da Rocha. Do período em que ficou na prisão, ela se lembra de receber um pacote de absorvente por mês, insuficiente para aquelas com o fluxo mais intenso. "Quando mandam, é um absorvente de baixa categoria, que muitas vezes dá alergia nas manas", afirma Batia.

Apesar de ter recebido o pacote mensal, ela se deparou com momentos em que lhe foi negado o direito básico. Estava indo para o hospital tirar uma tomografia quando percebeu que havia ficado menstruada. Ainda na penitenciária, os guardas negaram uma única unidade de absorvente e, por isso, sujou as roupas durante todo o caminho. No hospital, sentia os olhares sobre si. Lá, lhe deram gazes e algodão para colocar na vagina.

"A menstruação na cadeia mostra como a mulher na prisão é desvalorizada e empobrecida", diz.

De acordo com a Defensoria, um dos melhores cenários está na Penitenciária Feminina da Capital, onde a administração informou que distribuiu 28 pacotes em 2019 e 25 em 2020, mais do que a média indicada pela defensoria.

A reportagem visitou a unidade, porém, só foi autorizada a visitar a área administrativa e de atendimento à saúde e não teve contato com as presas.

Em uma sala recém-reformada, com as paredes brancas e sofás de couro, a diretora da unidade, Deyse Andrade, apresentou os kits de higiene que são entregues às presas. São dois: um quando chegam –chamado de kit de inclusão– e outro mensal.

No primeiro, contém um prato, colher, caneca, creme dental, sabonete, escova de dente, dois rolos de papel higiênico e um absorvente. O outro é semelhante, o que difere é que não recebem louça, e recebem dois pacotes absorventes. Lâmina de depilação ​e escova são esporádicos nas unidades mensais.

No ofício produzido pela defensoria, porém, as presas relataram acesso apenas a um pacote de absorvente por mês, o que disseram ser insuficiente. Afirmaram também não receber sabonetes em boa quantidade para sua higiene pessoal, o que é determinante para o agravamento da pobreza menstrual.

Questionada, a diretora disse que as reeducandas têm acesso livre aos itens, basta pedir. Ela se mostra orgulhosa do trabalho que ela e os profissionais desenvolvem. "Eu sou agente de segurança, então eu entrava para fazer contagem dentro das celas. Eu trabalhava diretamente dentro do pavilhão. Eu via um excesso, um acúmulo por parte delas", conta.

Na Penitenciária Feminina de Manaus, no Amazonas, o cenário era semelhante ao da capital paulista. Bastava pedir para ter acesso a um pacote de absorventes, mas às vezes também faltava.

Cláudia (nome fictício*) cumpriu seis meses de regime fechado em 2019 e, geralmente, tinha o item à sua disposição. Mas não foram poucas as vezes em que ela e suas companheiras tiveram que se conformar com um retalho de roupa ou papel higiênico.

Os absorventes eram aqueles doados pela penitenciária. Ela não se lembra de receber o item no jumbo –cesta de produtos autorizados pela administração para serem enviados pela família. Quando faltava, elas também trocavam entre si, na tentativa de não ter que recorrer a outros materiais.

"Era uma coisa bem difícil. Cometemos erros na vida, mas a gente não espera passar por isso", conta.

Procurada, a SEAP-AM (Secretaria de Estado de Administração Penitenciária do Amazonas) afirma que são distribuídos 30 absorventes por pessoa presa todos os meses e que, desde o ano passado, as reeducandas fazem um curso de fabricação de absorventes reutilizáveis em uma parceria com a UNFPA/ONU (Fundo de População das Nações Unidas).

A fim de driblar a falta de acesso a absorventes, o Congresso derrubou o veto do presidente Jair Bolsonaro (PL) à política de distribuição do item de higiene menstrual a mulheres em situação de vulnerabilidade, inclusive privadas de liberdade, na última quinta-feira (10).

Para Dina do Amparo Alves, advogada e doutora em Ciências Sociais na área de Justiça, sistema prisional e gênero pela PUC (Pontifício Universidade Católica), o projeto traz importantes garantias para mitigar a pobreza menstrual no cárcere.

Alves explica que a cadeia foi um espaço criado para a privação da liberdade de homens cisgêneros e, por isso, temas ligados a mulheres, como a menstruação, são marginalizados.

"A prisão foi pensada para homens. Apesar de o Brasil ter construído prisões femininas, ter feito adaptações, a gestão tem um viés marcadamente machista e patriarcal. A própria pobreza menstrual revela essa desigualdade estrutural", diz a advogada. "É um espaço feito por homens, para homens."

*Os nomes foram trocados a pedido das entrevistadas por medo de retaliação


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