Pastor Ed René Kivitz prega diálogo com periferia evangélica e fala sobre 'tigrinho gospel'
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Não dá para "ficar conversando com quem já concorda com a gente": quem quiser disputar terreno com o conservadorismo que encharca as igrejas evangélicas tem que ir para as periferias, escutar mais e falar menos.
"O que essas pessoas estão vivendo ali? Não é [buscar] o que aquele pastor descolado, progressista, está pensando. Isso aí a gente já sabe", diz Ed René Kivitz.
Ele mesmo faz parte dessa turma. Líder da Igreja Batista da Água Branca, já se posicionou mais de uma vez contra o bolsonarismo. Ele e sua filha Fernanda Kivitz lançaram em outubro o Instituto Galilea, que se propõe a "promover democracia, justiça social e direitos humanos".
Em entrevista à Folha de S.Paulo, Kivitz fala sobre "cristianismo de libertação", "tigrinho gospel" e o perigo de reduzir pessoas a uma caricatura ideológica. "Quando a gente se refere ao conservador como nazistoide, fascista, acabou o diálogo."
IGREJA NO BRASIL
A presença evangélica no debate público é seccionada em três momentos por Kivitz.
Primeiro teve a "alienação", quando as igrejas queriam mais é distância do poder. Nem sonhavam em formar uma bancada evangélica ou estar na mídia. "A grande preocupação era povoar o céu."
Então vem o estágio atual. "Essa igreja se torna rica, numerosa, com representatividade política. Assume uma postura de que vai governar o Brasil e impor sua pauta de valores."
O pastor vê seu instituto entrar numa terceira fase, "disputando as mesmas pautas da igreja conservadora, mas com uma visão libertária".
FALAR COM QUEM?
A malha evangélica é formada sobretudo por igrejas de pequeno porte espalhadas nas periferias, e não pelas denominações mais corpulentas que acabam servindo de bússola para o segmento.
É essa turma que Kivitz diz querer alcançar. "Não queremos falar com influencer, teólogo famoso, gente bombada. Queremos falar com o pastor das comunidades."
Se não dá para ficar na bolha, também não é o caso de bater à porta de líderes que pregam uma visão de mundo avessa à deles -o Instituto Galileia defende pautas tidas como progressistas, como antirracismo e meio ambiente.
"Não queremos ficar conversando com quem já concorda com a gente. Isso não significa conversar com quem discorda. Entre o concordar e o discordar existe um contingente grande de lideranças, especialmente as mais jovens, em busca de uma referência pastoral."
É preciso ir atrás "desse pastor que sabe que não é fundamentalista", mas também percebe que não dá para chegar no púlpito com uma "cartilha da esquerda evangélica".
RECALQUE
O azedume de tantos evangélicos com setores progressistas se explica em parte por um sentimento de inferiorização. "Nós, evangélicos, vivemos a oportunidade de superar um recalque, uma síndrome de 'vocês nos ignoraram, nos trataram de forma pejorativa, desdenharam de nós, mas hoje somos poderosos, e é a nossa vez".
AUTOCRÍTICA
É bom que o PT tenha lançado uma cartilha, na eleição, apontando que nem todo evangélico é fundamentalista, diz. "Temos que voltar a fazer um pacto civilizatório de ouvir as pessoas. Se aprendermos a conversar de novo e se respeitar, sem adjetivar de petralha, abortista, gaysista, nazista, fascista, talvez consigamos construir algo diferente do que esse estranhamento hostil constante."
PABLO MARÇAL
O ex-candidato a prefeito de São Paulo já disse que ninguém precisa dar dízimo e que a igreja não é indispensável se alguém quiser falar com Deus.
Kivitz diz que não surpreende que o discurso tenha eco entre fiéis, pois é coerente "com a índole do protestantismo, essencialmente anti-institucional e anti-clerical, constantemente denunciando como as lideranças religiosas hegemônicas tendem a se associar ao poder e sacrificar as pautas populares".
Marçal representaria, para muitos crentes, "esse movimento de desigrejamento, de crítica à institucionalização". Não por acaso bateu de frente com pastores como Silas Malafaia. É tão protestante, afirma Kivitz, "que os donos da religião evangélica não gostam".
TIGRINHO GOSPEL
Não que influenciadores como Marçal não representem perigo à sociedade. A dias do primeiro turno da eleição municipal, Kivitz se disse "impressionado com a teologia coaching". Seria a era da "Church Bet"?
"Esse jogo religioso é muito semelhante à aposta. 'Se o pastor liberar a palavra pra mim, me garantir que vou chegar lá, aí eu tô dentro'."
Essa retórica teria "a mesmíssima lógica operacional da banca". "É tigrinho gospel. Só que aqui não chama aposta, chama fé. Se Deus vai me dar R$ 100 mil, então já dou logo R$ 10 mil de dízimo. É mágica manipuladora pura, né? Tem nada a ver com o Evangelho."
FÉ EMPREENDEDORA
O crente médio tem apego ao "protagonismo da pessoa na própria experiência de fé, na construção da sua história".
A lógica vai por aí: "Não é o governo que vai resolver o meu problema. Não é a política pública, a economia, o ministro da Fazenda, o Banco Central, a taxa do dólar. Eu vou resolver a minha parada com o meu Uber, com o meu Instagram, com o meu empreendedorismo".
É a fórmula do "você é capaz, é digno de prosperar, e Deus está do seu lado". "Aí a gente faz uma leitura crítica e diz que o governo tem responsabilidades. Só que esse discurso é mais poderoso nas igrejas do que a nossa leitura crítica".
ESTADO LAICO
Estado laico não é sinônimo de Estado ateu, ressalta Kivitz. Ele precisa garantir "a isonomia entre todas as confissões de fé".
O pastor inclusive tem direito de pregar uma "leitura social" da qual ele discorda, como a ideia de que "a mulher é a dona de casa que cuida das crianças, enquanto o homem traz dinheiro para casa".
Malafaia, por exemplo, tem que poder dizer o que pensa, desde que não incorra em crimes. "Isso é algo que eu gostaria de afirmar com sublinhado, negrito e caixa alta: é legítimo que a igreja evangélica participe do debate sobre valores que estruturam a sociedade. Que diga 'nós queremos criminalizar o aborto'. Concordo com isso? Não. Mas é legítimo."
Kivitz evoca um discurso de Barack Obama pré-Presidência dos EUA. "Ele diz: você que é cristão, vá lá defender o seu ponto de vista, mas não cite versículo bíblico. Defenda o seu ponto de vista com uma razoabilidade tal que mesmo quem não é da sua religião vai dizer: esse argumento é razoável."
CRISTIANISMO DE LIBERTAÇÃO
A Teologia da Libertação, movimento que defende a justiça social como compromisso cristão, já foi bem popular na Igreja Católica latino-americana. Kivitz propõe que se fale em "cristianismo da libertação", que responde "às questões da mortalidade infantil, da pobreza, do esgoto a céu aberto".
Um dos eixos do instituto é popularizar essa corrente nos templos. "Por que, quando a igreja está ocupada em lidar com o pobre para que ele tenha caminhos de superar sua pobreza, isso é chamado de ideologia, e não de Evangelho?"
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