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'Prisão' de iceberg é fenômeno contraintuitivo e intriga cientistas

Por Folha de São Paulo

15/08/2024 11h15 — em
Variedades



SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - O fenômeno que aprisionou o maior iceberg do planeta, com 50 km de diâmetro, em pleno oceano, ao norte da Antártida, é contraintuitivo, mas conhecido há muito tempo e até hoje é um prato cheio para os oceanógrafos.

"A história do iceberg A23a é fascinante", diz César Barbedo Rocha, especialista em dinâmica de fluidos geofísicos e pesquisador do Instituto Oceanográfico da USP (Universidade de São Paulo). "Até onde eu sei é o primeiro registro de um iceberg tão grande nesse tipo de situação. Trata-se de um objeto exemplar para o estudo da interação de icebergs com a circulação oceânica e suas idiossincrasias."

A jornada do A23a começou há 38 anos, em 1986, quando ele se desprendeu do continente antártico, como fazem muitos icebergs, sobretudo nesses tempos de mudanças climáticas. Imaginava-se que ele fosse seguir, como seus colegas, um deslocamento gradual para águas cada vez mais quentes, afastadas da região polar. Mas, para a grande surpresa dos cientistas, ele acabou "preso" em uma coluna de Taylor.

Os primeiros indícios desse fenômeno hidrodinâmico foram vistos no final do século 19 e foram matematicamente formalizados entre 1916 e 1917, respectivamente por Joseph Proudman e Geoffrey Indram Taylor, por meio de um teorema que até hoje dá alguma dor de cabeça aos estudantes.

"Na USP, a dinâmica de fluidos está historicamente entre as disciplinas que mais reprovam alunos", conta Rocha.

"As colunas de Taylor são um fenômeno intrigante e não intuitivo. A história passada de geração para geração de dinamicistas de fluidos é que G.I. Taylor —meu tataravô acadêmico— obteve matematicamente a previsão de 'rigidez vertical' da coluna de fluido, mas não acreditou no resultado. Ele então bolou um experimento de laboratório [em 1923] que demonstrou a existência das colunas de Taylor."

Em termos simples, a tal coluna de Taylor, fora do laboratório, é um fenômeno gerado pela presença de uma protuberância no leito oceânico. Ela obriga a água em fluxo a contorná-la.

Essa água está em rotação, por conta de outro fenômeno, conhecido como força de Coriolis, que está ligada à rotação da própria Terra e faz com que grandes ciclones de ar e água na atmosfera e nos oceanos tenham no hemisfério Norte rotação em sentido anti-horário e no hemisfério Sul em sentido horário.

Por estar em rotação, a água se torna mais rígida que o usual. E aí, quando ela contorna a protuberância no fundo do mar, esse caminho de contorno acaba se reproduzindo até a superfície do mar.

"A rotação imprime certa 'rigidez vertical' e o escoamento flui de maneira coerente em todas as camadas da superfície ao fundo", diz Rocha. "Se existir uma protuberância ou obstáculo junto ao fundo, isso implica que, mesmo na superfície, longe da protuberância, o escoamento tende a contornar o obstáculo."

O CASO ESPECÍFICO

Em laboratório, é fácil simular com dispositivos giratórios e tinta num cilindro de água a formação das colunas de Taylor. Na realidade oceânica, a coisa é mais complicada. Sua estabilidade depende da dinâmica da corrente incidente na protuberância que está produzindo a coluna. Se a corrente variar, as colunas também terão variação. Se ela cessar por completo, as colunas desaparecerão.

E quanto ao caso do A23a? "Na região do Pirie Bank, ao norte das Ilhas Órcades do Sul, a corrente incidente é um dos ramos da Corrente Circumpolar Antártica, que é forçada pelos ventos que sopram de oeste para leste no oceano Austral. Essa corrente é quase permanente, embora apresente variações dia a dia, mês a mês, ano a ano etc.", explica Rocha.

"Portanto, o escoamento em coluna de Taylor ao redor do Pirie Bank é provavelmente quase permanente, mas deve ter variações, dia a dia, ano a ano, em sua intensidade."

Estando ainda em águas muito geladas, um pouco abaixo de 0°C, o A23a tem grande estabilidade. Enquanto ele seguir preso na coluna de Taylor, vai sofrer fragmentações, mas dificilmente vai degelar por inteiro. Contudo, sua estadia na "armadilha" não deve ser permanente.

"No oceano real, essas colunas não são perfeitas e também existem perturbações associadas a variações da corrente incidente", diz Rocha.

"É mais provável, portanto, que o iceberg eventualmente escape do escoamento ao redor do Pirie Bank e seja transportado para oeste. Não é possível prever quando isso acontecerá. Pode demorar semanas, meses ou anos." Os cientistas, naturalmente, estarão atentos a qualquer novidade.


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