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São Paulo utilizava africanos livres no serviço de limpeza pública mesmo depois da proibição do tráfico

Por Folha de São Paulo

26/03/2025 10h45 — em
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SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Uma carroça com rodas de ferro, puxada por uma besta, ocupada por dois africanos livres munidos de forcados (instrumento com um longo cabo de madeira, terminado com três dentes compridos). Assim era feita a limpeza pública na cidade de São Paulo, em meados do século 19, época em que seu perímetro urbano era um pequeno aglomerado de ruas e becos, entre os cursos dos rios Anhangabaú e Tamanduateí.

Africanos livres eram aqueles que chegaram ao Brasil depois da proibição do tráfico de pessoas escravizadas, em 1831, fruto de uma longa negociação com a Inglaterra. Pela lei, esses homens e mulheres ficavam tutelados ao Estado e eram obrigados a prestar serviços públicos por um mínimo de 14 anos. De 1831 a 1845, foram capturadas 45 embarcações ilegais e considerados "livres" 11.455 pessoas originárias da África, segundo estudos da historiadora Beatriz Mamigonian.

Além do serviço de limpeza pública, os africanos livres da cidade de São Paulo trabalhavam no Seminário dos Educandos e Educandas, na Santa Casa e no Hospício dos Alienados, na Casa de Correção e Penitenciária e no Jardim Público, o primeiro parque paulistano, hoje parque da Luz, inaugurado em 1825.

Até que a limpeza pública fosse uma atividade regular na cidade, em 1869, esse serviço era realizado de maneira amadora e improvisada.

A primeira tentativa de utilização dos africanos livres para essa atividade aconteceu em 1854, conforme ata da sessão ordinária da Câmara Municipal, de 31 de outubro.

Naquela data, um vereador identificado apenas pelo sobrenome, Gonçalves, fez a seguinte proposta: "Para comodidade e limpeza da cidade, proponho que se compre uma carroça e uma besta, e que se faça uma cocheira no Jardim Público, pedindo ao Governo dois africanos livres...".

Na sessão ordinária de 6 de novembro de 1854, a proposta do "Sr. Gonçalves" foi recusada, "porque por hora não há africanos livres disponíveis, que possam ser empregados no serviço tendente ao asseio da cidade".

Somente quatro anos depois, na sessão ordinária de 9 de agosto de 1858, proposta semelhante foi aceita e passou a vigorar.

Na ata daquela sessão, um vereador identificado pelo sobrenome Bithancourt propôs: "Que se oficie ao Governo pedindo dois africanos livres dos que se acham a serviço da Província, para serem empregados no serviço das carroças, que devem fazer a limpeza da cidade". A proposta foi aprovada na mesma data.

Segundo trabalho acadêmico assinado pela historiadora Enidelce Bertin, da USP, a moradia, a alimentação e as condições de trabalho desses africanos livres eram muito semelhantes às da escravidão.

"Os africanos livres moravam no local de trabalho, muitas vezes em péssimas condições", escreveu, apontando que, no caso do Jardim Público, as instalações estavam em ruínas, com o telhado prestes a cair.

Com relação à alimentação, Bertin registrou que "as ordens presidenciais cobrando economia atingiam todos os estabelecimentos, a ponto do inspetor do Jardim Público ter sido ordenado para que limitasse os gastos em 120 réis diários". Com isso, as refeições ficavam reduzidas a feijão, farinha e toucinho.

De acordo com Maria Helena Toledo Machado, especialista em história social da escravidão, pela USP, o caso dos africanos livres representa mais uma grande contradição histórica brasileira.

"A legislação, desde a década de 1820, já deixa claro que o estado brasileiro não considera o africano como uma pessoa nascida livre", explicou. "Mesmo quando apreendido em tráfico ilegal, ele tem que adquirir a sua liberdade prestando serviços públicos".

Outra historiadora com pesquisas na história da escravidão nas Américas, Ynaê Lopes do Santos, da Universidade Federal Fluminense, foi além e disse que o estado nacional brasileiro, mesmo depois da proibição oficial do tráfico de pessoas escravizadas, continuou apostando na escravidão como modelo ordenador da sua sociedade.

"Então a utilização dos africanos livres no serviço publico funcionava como uma extensão da própria escravidão", afirmou.

Passados 50 anos da abolição da escravidão no Brasil, em 1938, uma das primeiras pesquisas de cunho sociológico realizadas no país, pela Escola Livre de Sociologia e Política, apontou que as condições de vida dos funcionários da limpeza pública da cidade de São Paulo continuavam precárias.

Conduzido pelo sociólogo americano Samuel Lowrie, o levantamento apontou condições insalubres de moradia, com casos de até nove pessoas vivendo num único cômodo.

Além disso, 44% das famílias entrevistadas não tinham chuveiro ou banheiro para uso particular. No quesito alfabetização, apenas 58% desses funcionários da limpeza pública afirmaram saber ler e escrever, contra a média geral da cidade, na época, de 79% (das pessoas com sete anos ou mais).

"As condições de trabalho ou os baixos salários, principalmente estes últimos, têm sobre os trabalhadores que entram para a limpeza pública um efeito seletivo tal, que com suas famílias eles formam um grupo anormal em comparação com a população da cidade de São Paulo", concluiu o trabalho.


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