Surdos que leem lábios enfrentam dificuldades por causa de máscaras
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - No caixa de um supermercado, um homem coloca a mão sobre pescoço da mulher que o acompanha. A cena é curiosa, mas já se tornou rotina para o engenheiro civil Thierry Cintra Marcondes, 32, que é surdo e precisa sentir a vibração da fala da esposa para saber que a atendente do mercado, que usa máscara, perguntou se ele desejaria incluir o seu CPF na nota fiscal.
Não é novidade que a pandemia do novo coronavírus mudou a rotina de milhares de pessoas. No caso dos surdos, às dificuldades que já existiam antes do coronavírus aparecer se somam novos empecilhos. As máscaras, que se tornaram parte do vestuário, são imprescindíveis para se prevenir contra o novo coronavírus quando não é possível evitar o distanciamento social.
Muitos surdos fazem uso da leitura labial para entenderem o que é dito por pessoas que não sabem falar Libras (Língua Brasileira de Sinais). Em dezembro de 2019, Thierry concedeu à Folha uma entrevista sobre aparelhos auditivos digitais e, durante todo o tempo que conversou com a reportagem, fez uso da leitura labial.
Agora, ele precisa sair de casa acompanhado de sua esposa ou levando papel e caneta no bolso para compreender.
"No início da pandemia, eu precisei pedir a uma mulher com quem conversava, e que estava sem caneta, para ela tirar a máscara para que eu pudesse fazer a leitura labial. Agora, eu peço para que as pessoas digitem (no celular) e me mostrem quando querem dizer algo. No mercado, às vezes perguntam um monte de coisas, como se eu faço parte dos clubes de descontos ou se quero CPF na nota. Eu acabo sendo mal educado, porque não consigo entender", diz.
Mesmo os surdos bilíngues, que falam português e Libras, também podem enfrentar dificuldades. A língua de sinais é normalmente associada ao movimento das mãos, mas as expressões faciais são essenciais para facilitar a comunicação. As expressões faciais transmitem emoções e agem, muitas vezes, como entonação do que está sendo dito.
O presidente da ASSP (Associação dos Surdos de São Paulo), Leandro Miguel, explica que, apesar de terem sido noticiadas iniciativas de máscaras com partes transparentes sobre a boca, não há uma preocupação geral quanto à fabricação do produto. Para ele, a pandemia joga luz sobre o caráter invisível da surdez.
"Essa dificuldade que temos com a máscara nos afeta de várias maneiras. Numa longa fila de banco, por exemplo, se o agente bancário anunciar que pessoas com um determinado problema estão sendo atendidas do outro lado, essa informação não chegará para o surdo que está no meio da fila e ele esperará mais por causa desta falha de comunicação. Ao ser atendido, mesmo se identificando como surdo, o atendente, por razões óbvias, insiste em não tirar a máscara", afirma.
Em Minas Gerais e em São Paulo mães têm à mão máscaras transparentes para seus filhos surdos que fazem leitura labial, mas as medidas são isoladas e individualizadas. A reportagem não encontrou empresas ou ONGs que estejam produzindo e distribuindo esse tipo de máscara.
Mas não é só fora de casa que Leandro e Thierry enfrentam problemas. Trabalhar também se tornou uma tarefa mais complicada. Isso porque reuniões por videochamada também dificultam a leitura labial.
"Trabalhar o dia inteiro com videochamada nos traz muitas dificuldades. As imagens embaçam, travam, atrasam, isso nos prejudica, cortando a leitura labial. Além disso, são muitas pessoas falando ao mesmo tempo, o que nos impede de acompanhar tudo que está sendo dito", afirma Thierry, que diz se sentir privilegiado por ter um aparelho auditivo moderno: "o meu aparelho recebe os sons direto do meu computador via Bluetooth".
Outro problema relatado por Leandro é que não é incomum que em uma reunião haja pessoas que estejam conectadas apenas por áudio, dificultando muito a comunicação com pessoas surdas.
Leandro tem uma filha de 5 anos que não é surda. Ele explica que sua filha já entende que o pai apresenta dificuldades para entender quando ela fala por causa da máscara, mas que teme por outras famílias em que crianças menores se sintam desesperadas pela falta de resposta dos pais.
O Brasil tem cerca de 10,7 milhões de pessoas com algum grau de deficiência auditiva, segundo dados do Instituto Locomotiva. Cerca de 2,3 milhões têm surdez severa.
No dia 30 de abril, a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, publicou em seu perfil no Facebook uma foto em que aparece usando máscara transparente junto com a primeira-dama Michelle Bolsonaro, e a secretaria nacional dos direitos das pessoas com deficiência, Priscila Gaspar.
Procurado, o ministério informou que "a foto não se trata de nenhuma campanha ou medida pública" e que o objetivo da publicação era "conscientizar a sociedade de que existem pessoas surdas que não utilizam Libras e se comunicam fazendo a leitura labial, por isso a necessidade da disponibilização também de máscaras transparentes". No site do ministério, não indicações sobre o uso de máscaras transparentes ou outras orientações nesse sentido.
ASSUNTOS: mascaras de proteção, pandemia, surdos, Coronavírus, Saúde e Bem-estar